9 de fev. de 2018

Cinzas: o primeiro passo da Quaresma

A celebração da quarta-feira de cinzas, com o sugestivo rito litúrgico de impor cinzas nas cabeças dos celebrantes é o primeiro passo da peregrinação quaresmal. O sentido de peregrinação é muito apropriado para a Quaresma do Ano B, que conduz seus celebrantes para o silêncio do deserto (1DQ-B) e para o silêncio do Tabor (2DQ-B); para a purificação no culto a Deus (3DQ-B), para iluminar a vida no Evangelho (4DQ-B) e para a fidelidade a Jesus até o momento do seu martírio (5DQ-B).
            A Quaresma é um dom a ser acolhido com simplicidade por quem se faz discípulo e discípula de Jesus. Não é um tempo de penitência, no sentido de buscar sofrimentos, pequenos ou grandes, como por exemplo, se abster de comer ou beber algo que gosta; isto é bom e salutar, desde que a renúncia se estenda por toda a vida. Não tanto um tempo de penitência em busca de sofrimentos de abstenção, repetindo, mas uma peregrinação com o propósito de conduzir a vida a um sentido pelo qual valha a pena viver.
Esta é um das finalidades, pelas quais a Igreja impõe as cinzas na cabeça de seus filhos e filhas: para lembrar que a vida é passageira, não somente no sentido do passar do tempo que envelhece, mas no sentido que o tempo nos torna passageiros e nos conduz a um destino. Para onde vamos? Para onde vou?
            “O Espírito conduz Jesus ao deserto”, diz o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma. Jesus conduz seus discípulos ao Monte Tabor, diz o Evangelho do 2º Domingo da Quaresma. Ser conduzido, deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus, deixar-se conduzir por Jesus. As cinzas dizem que somos passageiros do tempo; a Liturgia dos dois primeiros Domingos da Quaresma propõe que, quais passageiros nos deixemos conduzir pelo Espírito de Deus e pelo próprio Jesus, nesta peregrinação.

Quaresma paroquial
            A paróquia tem a função de favorecer a peregrinação de cada um de seus paroquianos, no tempo da Quaresma. Penso em três elementos para que isso possa acontecer. O primeiro é considerar a Quaresma como um tempo privilegiado da espiritualidade comunitária. A Campanha da Fraternidade tem sua importância e sua necessidade, mas a espiritualidade da Quaresma nutre a espiritualidade com a Palavra, o silêncio e a oração e esta nutrição não pode ser ignorada. O segundo elemento é o itinerário litúrgico Quaresmal; para isso, a Equipe Litúrgica e as Equipes de Celebrações, juntamente com o padre — especialmente no que concerne à homilia — podem traçar um fio condutor que une um Domingo ao outro para favorecer o crescimento espiritual dos paroquianos em vista da conversão pessoal. O terceiro elemento é social; é aqui que entra a Campanha da Fraternidade como proposta de reflexão, sempre iluminada pela Palavra, num contínuo processo de conversão social e comunitária.
            Estes três elementos ajudam a evitar dois riscos: a teorização da espiritualidade quaresmal, feita de muitas pregações, recomendações e discursos e, o outro risco, aquele do ativismo, de criar “atividades quaresmais”, seja do lado devocional (procissões e caminhadas, por exemplo), seja do lado social, promovendo simpósios e debates sobre o tema da Campanha da Fraternidade, por exemplo. Nada disso é prejudicial desde que favorece e nutra a espiritualidade.
            As pregações quaresmais, por exemplo, são uma tradição antiquíssima na Igreja. Têm o seu valor, desde que não perca de vista o cenário que é proposto para a Quaresma nos dois primeiros Domingos: um cenário de deserto e de montanha; dois espaços rodeados pelo silêncio. Quaresma é essencialmente convite a silenciar para ouvir a Palavra de Deus, para ouvir a voz de Deus, presente na Palavra, presente no Evangelho mais que a voz humana.  
            Transformar a Quaresma em tempo de ativismo social com debates é um risco porque fere justamente o aspecto da peregrinação silenciosa da Quaresma. O debate acalora os ânimos e agita o interior da pessoa. A peregrinação, como dizia acima, é para acompanhar, num primeiro momento, Jesus ao deserto e ao Tabor. O risco do ativismo social na Quaresma, além do mais, pode conduzir a ideologias ou a partidarismos políticos, um risco ainda mais acentuado em anos eleitorais.

Peregrinar com cinzas na cabeça
            A peregrinação quaresmal, por fim, é realizada e vivenciada com cinzas sobre as cabeças dos discípulos e discípulas de Jesus. O Papa Bento XVI, em sua mensagem quaresmal para o ano de 2006, ajudava a entender que as cinzas sobre as cabeças indicam nossa condição de passageiros do tempo e no mundo. Passageiros que considera as cinzas como sinal da finitude. Disso, a proposta de conversão, à medida que se vai peregrinando pelas estradas deste mundo que passa. Uma peregrinação que nos coloca na necessidade de avaliar o olhar, o modo como olhamos as pessoas, como vemos a comunidade para, passo a passo, em ritmo de peregrinação, ir configurando o modo de ver a realidade da vida a partir do olhar de Jesus.
            Caminhar pela vida, peregrinar pela história com os olhos de Jesus. Esta é uma grande penitência, porque exige a renúncia do próprio ponto de vista, para olhar a realidade com outros olhos, com os olhos de Jesus, iluminando-se com a luz do Evangelho. Para isso, a necessidade de silenciar, de realizar a peregrinação interior para modelar o coração humano no Coração divino de Jesus.
            Silenciar, especialmente nas celebrações, porque é impossível viver a Quaresma sem o silêncio do deserto e sem o silêncio do Tabor.
Serginho Valle
Fevereiro de 2018



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