5 de out. de 2019

Acolhimento na Pastoral Litúrgica Paroquial


Um tema importante da Pastoral Litúrgica Paroquial (PLP) é o acolhimento. Importante e, ao mesmo tempo, pouco compreendido, considerado e reduzido, em muitas comunidades, como sinônimo de ser agradável para com quem vem participar de celebrações. Deste modo, reduz-se a Pastoral do Acolhimento na Liturgia a dar boas-vindas e distribuir folhetos na porta da igreja, antes das celebrações. Isto também faz parte acolhimento, mas para isso não é necessário criar um ministério. Dar boas vindas e distribuir folhetos é apenas uma função que qualquer pessoa pode exercer.
Claro que ser agradável é uma atitude recorrente e, digamos, normal de todo bom acolhimento. Mas, no contexto da PLP existe um algo a mais: o diálogo. O acolhimento, no contexto da PLP, é um espaço dedicado ao diálogo, por isso deve ser ocupado por pessoas que conheçam as exigências decorrentes da celebração de todos os sacramentos em razão do compromisso de vida, como é o caso, por exemplo, da Eucaristia, do Batismo, do Matrimônio, da Crisma, da Unção dos Enfermos e da Penitência. Estes são os sacramentos de maior contato com a equipe de acolhimento da PLP. Vamos nos ater somente aos quatro últimos sacramentos para dar uma noção sobre a especificidade da equipe de acolhimento na PLP.
Quando alguém procura a Igreja para batizar um filho ou para celebrar seu matrimônio, por exemplo, é recebido pelos membros da PLP responsáveis pelo acolhimento. Acolhe em nome da Igreja e entra em diálogo para ouvir os motivos pelos quais estão procurando a celebração do sacramento. Quando um adolescente ou jovem procura a Igreja para receber o sacramento da Confirmação, o trabalho do acolhimento acontece com o catequista que atua na PLP. Uma boa preparação para o sacramento da Penitência poderia ser feita com membros da equipe do acolhimento preparados especificamente para atuar na Pastoral da Reconciliação, ajudando as pessoas a fazerem boas confissões, por exemplo. Pense na riqueza do acolhimento com pessoas enfermas, seja em levar a comunhão para doentes como em prepara-las e ajuda-las a celebrar a Unção dos Enfermos.
Como se vê, é um serviço que exige preparo e testemunho de vida cristã porque o membro da equipe de acolhimento precisa ser capaz de propor as consequências existenciais na celebração de cada sacramento. Os membros da equipe do acolhimento, por isso, devem saber propor as responsabilidades a quem traz o seu filho para ser batizado, entrar em diálogo com os noivos e ajudá-los a compreender o significado do sacramento do Matrimônio. Ajudar adolescentes e jovens a entrar no discipulado, favorecer o caminho de conversão de quem se prepara para a confissão. Uma preparação que, ao meu ver, poderá ser sempre feita em pequenos grupos.
Dentro deste contexto, quem faz parte do acolhimento, na PLP, são pessoas capazes de dialogar, quer dizer, de ouvir e de propor aquilo que a Igreja exige sem atitude impositiva. É alguém afetuoso e claro nas propostas. Alguém que não se preocupa em convencer o outro com argumentos, mas propor o que pede o Evangelho e a Igreja em vista da maturidade na fé dos celebrantes e o ingresso no discipulado do Evangelho.
Um ícone muito bonito, e esclarecedor, do trabalho da equipe de acolhimento, na PLP, é o quadro dos discípulos de Emaús (Lc 21,13-35). O membro da equipe de acolhimento é alguém disposto a caminhar com seus irmãos e irmãs até o momento da celebração, ouvindo a vida dos caminhantes, conhecendo suas esperanças e decepções, partilhando alegrias e tristezas... Neste acompanhamento, procura favorecer a iluminação de suas vidas e fazendo seus corações arderem com o anúncio do Evangelho. Sim, porque, em muitos casos, os membros da equipe de acolhimento são os primeiros anunciadores de um Evangelho que é ouvido e que passa a comprometer a vida dos celebrantes proporcionando comportamentos existenciais
Um trabalho, em conclusão, extremamente importante na PLP e, mais importante ainda na comunidade, em vista de celebrações conscientes e capazes de tocar e transformar a vida dos celebrantes com o Evangelho e pelo Evangelho.
Serginho Valle
Setembro 2019

7 de set. de 2019

Celebrações terapêuticas ou celebrações da fé?

A Igreja tem registro de curas acontecidas durante celebrações litúrgicas. Hoje, se faz propaganda de celebrações com promessas terapêuticas e curas físicas e espirituais. Não se duvide que Deus possa agir no decorrer de uma celebração litúrgica. Tenho participado de muitas curas espirituais no Sacramento da Reconciliação e, até mesmo, curas físicas em celebrações da Unção dos Enfermos. O mesmo aconteceu em celebrações Eucarísticas. Minha interrogação vai na direção da pretensão de realizar celebrações com promessas de curas e milagres. Considero que ninguém pode ter controle de pretender que Deus aja para curar “naquela celebração”, marcada para “aquela hora” e com alguns ritos introduzidos — nem sempre litúrgicos — em alguma celebração particular. Ninguém pode controlar o Espírito de Deus que age na liberdade e não com agendas de data e hora marcadas.
            Além do mais, considero útil servir-se do bom senso, e para isso um bom começo pode estar nas Instruções do Sacramento da Unção dos Enfermos — Praenotanda 6 — que reconhece a importância e a necessidade da intercessão pela saúde corporal e de ser atendido “se esta for a vontade Deus”. Percebe-se que não se trata de uma promessa, mas de uma possibilidade real de quem, humildemente, se coloca em atitude de aceitar a vontade divina. Este aspecto de cura na Liturgia e pela Liturgia foi contemplado no Concílio de Florença (1431-1445) (Cf. Ds 1325) e está presente no Catecismo da Igreja Católica (n. 1520), que trata deste tema como “dom particular do Espírito Santo”, entendendo a necessidade da intercessão deste dom presente nos ritos sacramentais propostos pela Igreja.
Algumas celebrações transmitidas na mídia exageram em promessas de milagres e curas de todo tipo. Não tenho o direito de emitir julgamento, mesmo porque todo julgamento sempre recai em ressaltar o negativo; é preciso reconhecer que muitas dessas celebrações, sempre com forte acento emocional, tem sido caminho de conversão pela cura espiritual para muitas pessoas. Não julgo, mas constato este fato no que diz respeito ao aspecto psicológico da emoção, que é sempre passageiro e, por isso, passível de equívoco. No que se refere às curas espirituais, a Direção Espiritual e os místicos da Igreja, insistem na necessidade de entrar e fazer o caminho do discipulado. A conversão de São Paulo é um bom exemplo disso.
Na prática, do ponto de vista celebrativo, estou falando do perigo da instrumentalização da Liturgia. Esta pode ser instrumentalizada para servir a interesses políticos e sociais, como tem acontecido, e pode ser instrumentalizada com promessas terapêuticas e curativas. De um modo ou de outro, é sempre instrumentalização, o que implica em considerar uso equivocado da Liturgia.

Despertar a fé
Uma das finalidades inerentes na celebração da Liturgia é o despertar da fé. Repito: finalidade inerente, porque toda celebração serve para despertar e fazer crescer a fé, em primeiro lugar. Despertar, animar e alimentar a fé. Toda celebração litúrgica é, neste sentido, um momento para confirmar a fé. E isso vale especialmente quando celebramos com irmãos e irmãs debilitados fisicamente ou espiritualmente. Não se pode perder este aspecto, pois, em casos extremos, existe sim o risco de instrumentalizações com fins beirando a “efeitos mágicos”, o que não tem nada a ver com celebração litúrgica. Seria muito triste se assim acontecesse ou que se ritos fizessem supor um conceito próximo a isso.
Um modelo para compreendermos bem este aspecto encontra-se no episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). Debilitados espiritualmente em suas esperanças, os discípulos retornam de onde partiram. A Liturgia da Palavra, realizada com Jesus no caminho, até a pousada, e a partilha do pão, reascenderam neles a fé, restabeleceu a esperança no coração e os tornou missionários e anunciadores do encontro com o Senhor. Para isso acontecer em nossas celebrações, é importante que os responsáveis pela preparação das celebrações, as equipes de celebrações, saibam conduzir o coração dos celebrantes ao coração do Mistério da fé. É a dinâmica mistagógica que, na prática, significa conduzir para dentro do Mistério da Salvação. Não para dentro do misterioso, mas para dentro da ação divina onde acontece o Reino de Deus. Neste caso, o sofrimento pode ser acolhido como parte do caminho da vida pessoal e não usado para desafiar a Deus com milagres, como tem acontecido com Jesus, narrado em Mt 16,1-4.
Mais que promover celebrações terapêuticas com promessas de curas é preciso compreender que toda atividade de serviço divino em favor do povo — como se entende pela etimologia da palavra “Liturgia”, que é serviço a favor do povo e serviço do povo dirigido a Deus — realiza-se na liberdade do Espírito e querer programá-la para finalidades ou interesses humanos, por mais justos e benevolentes que sejam, é algo que, ao meu ver, não nos compete. Em situações de crises, físicas ou espirituais, a celebração é fonte para discernir qual a vontade de Deus em todos os momentos de nossas vidas ou num momento existencial em particular. Se Deus quiser agraciar-nos com sua bênção curativa, bendito seja o seu nome pelos séculos dos séculos.
Serginho Valle  

Agosto de 2019 

17 de ago. de 2019

Liturgia, fonte da fé

Já tratei desse tema aqui no meu blogger, mas considero relevante voltar a falar sobre a Liturgia como fonte da fé e, em consequência disso, fonte da vida cristã. Uma das funções primárias da Liturgia é construir, alimentar e animar a Igreja viva, formada por pessoas que iluminam suas vidas na fé em Jesus Cristo. Não existe nada de novo nisso, uma vez que se trata de uma proposta presente na Tradição litúrgica da Igreja. Uma bela inspiração Bíblica, a este propósito, encontra-se no encontro de Jesus com os discípulos de Emaús (Lc 21,13-35). Naquele episódio, Jesus celebra com os dois os discípulos a partilha da Palavra e do pão para alimentar neles a fé na sua Ressurreição. Cada celebração, portanto, inspirando-se em Emaús, é encontro com o Senhor e cada encontro com o Senhor, na celebração, é fonte de vida nova na fé. 
Tal realidade da Liturgia não pode se limitar, evidentemente, a uma fé que reside unicamente no emocional e no sentimento. Tanto o emocional e o sentimento são importantes. De fato, os discípulos de Emaús ficaram emocionados ao celebrar a fractio panis com Jesus e seus sentimentos foram partilhados com os demais Apóstolos porque seus corações ardiam. Depois da emoção e do sentimento, a atividade: não pensaram no cansaço da caminhada e nem se permitiram dormir para na manhã seguinte ir contar aos seus amigos os aconteceu com eles; na mesma hora levantaram-se e foram a Jerusalém. A exegese considera esta dinâmica como uma proposta dinamizadora da evangelização: partilham a Palavra e o pão na celebração com Jesus e, depois, partilham a Palavra e o pão na vida, contanto a todos o que sucedeu em suas vidas, na celebração, com a presença do Senhor ressuscitado.
 A celebração litúrgica como fonte da fé manifesta-se no testemunho evangelizador. Não a fá reduzida a simples crença, mas a fé testemunhada, que faz, que impulsiona a caminhar e a partilhar a experiência do encontro com o Senhor na Liturgia celebrada.
Existe, contudo, uma condição para isso acontecer: que as celebrações sejam liturgicamente celebradas. Celebrações capazes de equilibrar a emoção, o sentimento e o compromisso. Nossas celebrações – e aqui não penso unicamente na Eucaristia – não podem ser instrumentalizadas unicamente em um único aspecto e animadas unicamente num viés: só o emocional ou só o sentimental ou unicamente o compromisso existencial e social. Existe a necessidade de se emocionar na celebração, necessidade que a celebração toque os sentimentos e, necessidade que a celebração comprometa. Compromisso que, às vezes, é pessoal, outras vezes é comunitário, em algumas vezes, familiar, e assim por diante. Compromisso que seja manifestação da fé na vida nova, celebrada na Liturgia e semeada pelo testemunho de vida.
A interconexão dos três aspectos irá formar celebrações fontes da fé. Neste aspecto, considero louvável tantas iniciativas celebrativas realizadas em muitas comunidades com a finalidade de prolongar as celebrações,especialmente a Eucarística, em momentos orantes comunitárias, como por exemplo, de adoração silenciosa ao Santíssimo, Horas Santas, celebrações de bênçãos, celebrações penitenciais, Liturgia da Palavra na pedagogia da Lectio Divina, valorização de Tempos Fortes da Liturgia, especialmente na Quaresma e no Advento, mas também no Tempo Pascal e no Tempo Natalino. 
As inspirações que vêm da Liturgia para fazer crescer a fé em nossas vidas são inúmeras e são fonte de criatividade existencial, especialmente importante, em momentos de crise e de conflitos. Não se pode, por isso, limitar-se unicamente a celebrações dos Sacramentos. A própria Liturgia inspira celebrar a vida de outras formas e com tantos outros ritos em vista de fomentar a fé e, com isso, alimentar a espiritualidade dos celebrantes.
Serginho Valle  
Agosto de 2019 


27 de jul. de 2019

A comunicação e a linguagem multisensorial da Liturgia

A Liturgia não é uma sessão de verbalizações sobre Deus, uma espécie de palestra ou de conferência de temas religiosos ou de autoajuda com fundamentação bíblica. A Liturgia é celebração e seu elemento concreto, aquilo que faz a Liturgia acontecer na celebração, é a arte de saber se comunicar com uma linguagem multisensorial.
A celebração litúrgica é uma arte que toca todos os sentidos. Podemos dizer, em termos comparativos, que a pintura e a fotografia, por exemplo, comunicam-se pela luz, atraindo o olhar. A escultura pode ser tocada; arte que se serve da visão e do tato. A música é uma arte que passa pelos ouvidos, não pelo olhar, e convida o corpo a dançar. E assim com a linguagem de outras artes.
O processo comunicativo na Liturgia desenvolve-se com uma linguagem multisensorial porque toca, atinge, coloca em movimento, todos os sentidos. Num rito de ingresso (procissão inicial), por exemplo, comunica-se com a arte visual — símbolos levados na procissão de entrada — com a arte musical — canto que acompanha a procissão de ingresso — com a arte cinésica — caminhar até o altar — com a arte gestual — inclinação ao altar e beijo no altar —. Por isso, só no rito inicial podemos perceber o envolvimento de várias competências comunicativas. No decorrer da celebração, aparecem outras mais.
Tratando-se de arte comunicativa, estamos falando de competências para que a mensagem chegue e, mais que isso, atinja a vida dos destinatários. Competência para que o ingresso do rito inicial de uma Missa, por exemplo, seja de fato uma procissão e não um desfile com padre e ministros cumprimentando distribuindo acenos. Que os músicos tenham a competência de não abafar a voz dos celebrantes, mas saibam tocar seus instrumentos e cantar de tal modo que a voz da assembléia ressoe no interior da igreja. O símbolo da Cruz Processional, do Evangeliário, as velas... sejam símbolos bonitos, atraentes, dignos, despertadores de respeito e reverência.
Esta exposição, contemplado mesmo que superficialmente apenas os ritos iniciais, denota a necessidade de competências para se comunicar com a arte da comunicação litúrgica. Celebrar com arte é se servir de várias linguagens artísticas que atingem todos os sentidos dos celebrantes que, por sua vez, não são meros assistentes — para quem se apresenta a Missa a uma platéia —, mas participantes ativos de todo este processo comunicativo. Participação na arte que favorece nos celebrantes o ouvir, ver, sentir, tocar, degustar, cantar, silenciar... Querer transformar a celebração em falatórios, acumulando explicações de explicações, para explicar o Mistério, dificulta, ou até mesmo impede, o processo de acolher a mensagem sem alguma indicação verbalizada. A linguagem artística não se comunica somente com palavras e não é dirigida somente ao intelecto, mas passa fortemente pelo sentimento e atinge a vida.
Em resumo, não se pode transformar a celebração em falação. A comunicação verbal tem prevalência, mas como oração e com algumas (breves) monições, não em forma de explicações ou e menos ainda com minissermões. A homilia, entendida como momento da partilha da Palavra, é breve, entre 8 e 10 minutos no máximo. Todos estes fatos favorecem compreender que a linguagem litúrgica é uma linguagem artística, que carece de explicações quando comunicada com competência.

A linguagem artística da Liturgia
Não tenho receio de definir a comunicação litúrgica como uma bela obra de arte que se comunica com diferentes linguagens. Muitas delas compreendidas unicamente pela experiência — no sentido de envolvimento — na participação ritual. Por isso, as explicações de Missa parte por parte, por exemplo, favorece muito pouco a compreensão Litúrgica do ponto de vista comunicativo. Sendo a linguagem litúrgica uma linguagem artística, o foco não está na compreensão do que se faz, mas no como se faz para atingir a vida dos celebrantes. Na comunicação da arte, a compreensão não acontece por explicações, mas pelo contato com a emoção e com o sentimento que repercute na vida pessoal promovendo algum significado.
Não se pode deixar de falar que, hoje, existe um exagero neste aspecto de usar a linguagem litúrgica focando unicamente no emocional: fechar os olhos, tocar no coração, levantar os braços, música de fundo, apagar a luz... Não existe comunicação artística sem a emoção, mas focá-la exageradamente na emoção, do ponto de vista da comunicação litúrgica, é ruidoso. O mesmo se diga daquelas celebrações que se canta o tempo todo. A música é uma linguagem artística importante na comunicação litúrgica, mas quando se exagera e se inflaciona a celebração com canções, existe ruído. Quando se exagera na simbolização, existe ruído; quando se exagera na verbalização existe ruído. E assim com todas as linguagens. A comunicação artística é discreta. Você se coloca diante de um quadro, por exemplo, de uma bela obra de arte, e comunica-se com o quadro permitindo que as luzes das cores penetrem em você e, pouco a pouco, timidamente, acorde sentimentos e emoções que passam a ter sentido, que ganham significado ao entrar em contato com a sua vida. Aqui temos um processo ideal na comunicação litúrgica. Uma comunicação artisticamente discreta que faz significado na vida sem qualquer tipo de imposição verbal, intelectual, emocional...
Celebra bem quem se comunica discretamente com a linguagem artística sem se preocupar com conteúdos e com efeitos. Proponho, neste sentido, agir como pintor, que propõe discretamente sua obra, o seu quadro, permitindo que cada destinatário encontre no quadro um significado diferente, de acordo com sua experiência existencial.
Serginho Valle
Julho de 2019

20 de jul. de 2019

Linguagem simbólica na Liturgia

A arte de comunicar-se bem consiste no conhecimento e na prática da linguagem. Um bom músico só se comunica bem quando conhece a linguagem e tem prática, depois de muito treino e ensaio, com seu instrumento. Assim como o músico precisa conhecer o instrumento, conhecer a linguagem e a técnica para bem se comunicar, o mesmo acontece com quem se dedica à arte da comunicação litúrgica: necessita conhecimento da linguagem litúrgica.
            Ao se tratar da linguagem litúrgica, estamos falando de uma linguagem complexa ou, melhor dizendo, da multilinguagem que compõe o processo comunicativo litúrgico presente na prática celebrativa. Estou falando da linguagem da música, linguagem oral, linguagem visual e, dentre outras, da linguagem simbólica. Este conjunto de linguagens faz com que a Liturgia situe-se no contexto de comunicação artística. Por isso, é preciso conhecimento e senso artístico para se comunicar bem com a comunicação litúrgica. Neste processo comunicativo artístico, que permeia toda celebração litúrgica, meu aceno vai para os símbolos e sinais na ação litúrgica.
Quando as palavras não conseguem dizer tudo, então se recorre aos símbolos. Isto acontece muito na comunicação litúrgica ao fazer amplo uso da linguagem simbólica. A Liturgia acontece num contexto simbólico, como é o fato de nossas igrejas, que não são salões com palcos, mas arquitetura simbólica que abriga a celebração litúrgica. Todas as celebrações sacramentais são realizadas com símbolos e com gestos simbólicos. Nisto inclui simbolismos do vestuário, como os paramentos e as vestes ministeriais, simbolismos gestuais, como os gestos orantes, as posições corporais... tudo com significados simbólicos. A comunicação litúrgica não é “falatória” e muito menos “falação”, é uma comunicação dinamicamente simbólica e significativa. Por isto, a necessidade de conhecer o que significa cada símbolo e cada sinal para celebrar com dignidade e faticamente.
O código simbólico litúrgico é complexo e traz consigo uma bagagem de séculos de Tradição e de tradições. Sim, Tradição com o “T” maiúsculo, indicando a “Traditio” que se fundamenta na Palavra e no patrimônio sacramental simbólico eclesial formado no decorrer dos séculos e, as tradições com “t” minúsculo, composto de ritos introduzidos em épocas culturais. Por isso, repetindo, a linguagem simbólica litúrgica é riquíssima e, ao mesmo tempo complexa. É uma linguagem essencialmente artística e, por isso, quando não bem feita sabota a celebração com comunicações ruidosas.

Celebrar com símbolos e sinais
A complexidade da linguagem simbólica e sígnica da comunicação litúrgica exige conhecimento, arte e, uma coisa que às vezes se esquece, simplicidade que, no caso, tem a ver com a medida certa. O excesso de sinais e símbolos torna-se ruído no processo comunicativo litúrgico. É uma comunicação que precisa ser bem dosada. O excesso de símbolos e sinais, além daqueles que são próprios da celebração litúrgica, por exemplo, torna a celebração litúrgica pesada, longa, cansativa e provocadora de distração. De outro lado, a ausência de símbolos e sinais, a torna áspera, sem atrativo, seca e, sem receio de afirmar, a torna vazia, sem graça. A comunicação simbólica litúrgica distingue-se pela simplicidade discreta, que a faz comunicativamente bela.
Para isso existe um critério que precisa ser levado em conta. O critério do “reconhecimento”. Uma das tantas definições e funções de sinal e símbolo, válidos especialmente para a comunicação litúrgica, é aquela do reconhecimento. O argumento do “reconhecimento” fundamenta o gesto celebrativo simbólico mais emblemático presente na Liturgia Eucarística: “eles o reconheceram ao partir o pão” (Lc 2431). O gesto simbólico de partir o pão, feito com o símbolo do pão, revela a presença (o reconhecimento) do Senhor. Os discípulos reconhecem no simbolismo do pão e no gesto simbólico de repartir o pão na mesa, a presença de Jesus. Disto podemos concluir que encher a celebração de sinais e símbolos, com explicações e mais explicações para cada sinal e símbolo, é ruído comunicativo; é chato, é sinônimo de celebração com tempo psicológico interminável. A inflação da “simbolomania” é prejudicial para a comunicação litúrgica.
Voltando ao que se dizia, para introdução de símbolos ou sinais na celebração adote-se o critério do “reconhecimento”. Usar símbolos e sinais, nos quais os celebrantes reconhecem a presença do Senhor na vida cotidiana. E para isso, a necessidade de conhecimento e da arte de bem se comunicar com a linguagem litúrgica e, mais ainda, o conhecimento da compreensão simbólica dos celebrantes.
Serginho Valle
Julho de 2019


13 de jul. de 2019

Aprender a celebrar celebrando: a sensibilidade celebrativa

A vivência da Liturgia acontece pelo fazer celebrativo. É celebrando que se aprende a celebrar adequadamente com os princípios e as normas litúrgicas e, principalmente pela prática ritual da linguagem litúrgica, possibilitando uma comunicação litúrgica eficaz. Para isso é necessário experiência e conhecimento da linguagem litúrgica, que produz competência, conhecimento, zelo pela celebração, sensibilidade litúrgica e sensibilidade celebrativa.
            A questão da sensibilidade é de vital importância, seja a sensibilidade litúrgica como a sensibilidade celebrativa. Sensibilidade tem a ver com sentido, com sentimento. Aqui é preciso uma distinção psicológica entre sentimento e emoção. A sensibilidade celebrativa, por exemplo, não se limita à reação emotiva, mas tem a ver com sentimento, com aquilo que não é apenas efervescência emocional, mas com aquilo que permanece, que compromete, que se transforma em vida. A sensibilidade tem, sim, o seu lado emotivo, emocional, que toca a pessoa no durante celebrativo, também pelo fato de a linguagem litúrgica ser linguagem artística, mas não pode parar nisso, precisa tornar-se sentimento, algo permanente na vida como amor, misericórdia, caridade, compaixão, bondade...
            A sensibilidade litúrgica e a sensibilidade celebrativa estão presentes na atividade da Liturgia prática que, em sua prática, é celebrativa, é comunicação que envolve emoção e sentimento. Para isso se exige, seja da parte de quem preside como da parte dos celebrantes, um aprendizado que acontece pelo “aprender a celebrar celebrando”. Se os celebrantes — presidente e assembléia — penderem unicamente para o emocional a celebração fica defasada, porque emociona, mas não compromete a vivência; toda celebração é comprometedora, compromete os celebrantes com aquilo que celebram. Disso, a sensibilidade da equipe de celebração, mas muito especialmente do padre, para celebrar com emoção para se poder cultivar sentimentos comprometedores.
Celebrar liturgicamente não se resume a uma simples técnica, de realizar corretamente os ritos previstos pela Igreja. Claro que isto é importante. A celebração litúrgica tem a ver com sensibilidade e, por isso, “aprender a celebrar celebrando” dando vida aos ritos em momentos que emocionam — para que os ritos não sejam frios e vazios, nem tediosos e chatos — e se consolidem em sentimentos profundos próprios do Coração divino, que se transformam em vivência pelo discipulado e pelo testemunho cristão.
Serginho Valle 
Julho de 2019

6 de jul. de 2019

A Liturgia na vida do sacerdote

O padre, porque lida com as coisas de Deus, deve estar próximo de Deus para partilhar a vida divina com quem celebra os sacramentos, os momentos de oração ou ritos de piedade (bênçãos, funerais, adoração ao Santíssimo...). Quanto mais intimidade com Deus o padre tiver, mais facilmente poderá conduzir os celebrantes ao encontro com Deus na celebração litúrgica.
            Deste pressuposto, pode-se dizer que não existe celebração mais ou menos bonita, porque todas se tornam bonitas quando o padre favorece nos celebrantes o encontro com Deus. Não se trata de criar, apenas, um clima emocional para despertar sentimentos fortes, mas de favorecer o encontro com Deus no modo de celebrar. E para isso, a santidade de vida do padre é imprescindível, particularmente manifestada pelo zelo e pelo carinho com que trata a Liturgia e como se coloca em oração quando preside as celebrações.
A santidade na vida sacerdotal é um exercício de contato com Deus que o padre procura realizar e viver diariamente e de diversos modos, seja pela caridade com todas as pessoas, seja pela sua vida de oração pessoal, seja pela fidelidade à sua vocação. No que se refere à Liturgia, entre tantas outras propostas, chamo atenção a três momentos de meditação relacionados à Eucaristia: antes, durante e depois da Missa.
Antes da Missa, como preparação, que pode ser feita pela Lectio Divina e pela reflexão das leituras do dia. Durante a Missa, aproveitando o silêncio depois da homilia ou o tempo silencioso quando não se faz homilia. Por fim, a oração depois da Missa, que poderá acontecer num breve momento de ação de graças pessoal, na igreja mesmo, ou num momento do dia. São momentos nutritivos da vida espiritual do sacerdote, ligados à Liturgia, para alimentar seu coração com a paz divina.
            A meditação, seja pela Lectio Divina, seja se servindo de outros métodos, é essencial na vida do padre, especialmente importante para seu ministério de guia espiritual da comunidade. Assim como o alimento material não alimenta e nem sustenta a vida se não for devidamente assimilado pelo corpo, assim o sacerdote não terá condições de caminhar em seu ministério se não se alimentar da Palavra de Deus. Faz parte da fidelidade ao seu ministério sacerdotal alimentar-se diariamente com a Palavra de Deus, para que tudo que disser e fizer seja iluminado e motivado pela Palavra divina. Isto ganha visibilidade nas homilias e no modo como celebra os sacramentos, como por exemplo, no aconselhamento e orientação de confissões, no conforto da celebração da Unção dos Enfermos, no modo de fortalecer a fé em situações de funerais, na maneira de propor a presença divina na celebração matrimonial, etc...
            Para concluir, uma última consideração: a importância da oração com a Palavra de Deus. A Lectio Divina cumpre tal finalidade, mas existe outra que gostaria de destacar e que considero importantíssima na vida do padre: a Liturgia das Horas. A pedagogia orante da Liturgia das Horas, de permear o dia em oração, é excelente e essencial na vida espiritual do sacerdote. Gostaria de fazer referência ao Ofício das Leituras, por ser uma oração, pela qual se entra em contato com a Palavra de Deus e com escritos espirituais dos Padres da Igreja. Dedicar de 15 a 20 minutos para recitar os salmos e deixar que eles cantem no seu coração é fonte de paz interior, momento de intimidade com o Senhor, condição necessária para descansar com o Senhor e alimento espiritual. O padre que aprende a rezar poeticamente com os salmos torna-se mais humano e mais sacerdotal por conviver todos os dias com a poesia humana transformada em oração e em Palavra de Deus.
Serginho Valle
Julho de 2019


22 de jun. de 2019

A Liturgia é a Oração Litúrgica da Igreja

A série de artigos sobre a espiritualidade litúrgica, que tenho publicado aqui, no meu blogger, tem duas finalidades práticas. Uma, chamar atenção para aquilo que torna a celebração, não apenas uma ritualidade religiosa, mas momento orante. A outra, insistir no fato que a Liturgia é a pedagoga do crescimento na vida cristã e isto acontece na e pela escola da espiritualidade litúrgica. As celebrações litúrgicas não se resumem em ritos e em “criatividades” para atrair ou agradar os celebrantes, além disso, são essencialmente momentos orantes e escola da espiritualidade para a vida no discipulado do Evangelho.  
Uma das características mais marcantes, do ponto de vista litúrgico, é compreender que a Liturgia é a Igreja em oração. Através da sua Liturgia, a Igreja participa da oração do Coração de Jesus rezando no meio do mundo. É o Coração de Jesus orante, mediador e Sumo Sacerdote, que pela oração de seus membros, alcança todas as partes do mundo para elevar a glorificação ao Pai de todos os homens e mulheres pelo impulso vivificante do Espírito Santo. A oração da Igreja, na Liturgia, é uma realidade viva e dinâmica no meio do mundo que cada celebrante participa e comunga pela pertença ao Corpo Místico de Cristo.
O princípio teológico proposto no parágrafo anterior é suficientemente profundo para entender que a ação da Liturgia, em todos os Sacramentos, e especialmente na Eucaristia, não se resume unicamente em expressões exteriores de ritos e ritualidades. Ao celebrar o Mistério Pascal de Jesus Cristo, a Liturgia conduz e introduz seus celebrantes para dentro do mistério da oração. Infelizmente, este é um aspecto que ainda precisa ser apreendido e aprendido, seja da parte de muitos padres como da parte da grande maioria dos celebrantes. A catequese de hoje deveria favorecer a compreensão de que os participantes na celebração não sejam meros celebrantes executores de ritos, mas celebrantes orantes, no modo próprio da Liturgia rezar.
No dizer da Teologia Litúrgica, a oração da Igreja, celebrada na Liturgia, é a síntese viva de toda a obra da Salvação de Jesus Cristo, para a glorificação de Deus Pai, na ação do Espírito Santo. Por isso, toda vez que celebramos na terra a Liturgia de ação de graças (Eucaristia), nos unimos com os anjos e santos para cantar a uma só voz — a voz da Igreja terrena e aquela da Igreja celeste — a proclamação da santidade divina: “SANTO, SANTO, SANTO é o Senhor Deus do universo. O céu e a terra proclamam a vossa glória”. Trata-se de um Mistério solene, do qual somos convidados a nos aproximar com respeito e com temor para silenciosamente adorar e se deixar envolver na santidade divina para alimentar a vida e prosseguir no caminho do discipulado, caminhando na estrada de Jesus.
Serginho Valle
Junho de 2019



8 de jun. de 2019

A Liturgia: oração da Igreja

A celebração litúrgica se caracteriza também como momento orante da Igreja. Aliás, trata-se de uma das mais importantes características da celebração litúrgica. Diria que é preciso conhecer muito bem a Liturgia para fazer da celebração uma oração pessoal e comunitária assemblear. Conhecer bem a Liturgia, conhecer o processo comunicativo litúrgico para transformar a celebração, especialmente a Liturgia Eucarística, em clima de oração. É mais fácil, por exemplo, um padre ser animador da Missa que condutor orante de uma assembléia. Hoje, por exemplo, percebe-se que existe oração nas celebrações, mas quase que paralelo ao processo comunicativo e ritual da Liturgia, como as preces de cura, em qualquer momento da celebração; em alguns casos, reza-se com música em excesso (cantorias) ou com dinâmicas de envolvimento emocional. Estes exemplos favorecem a compreensão da dificuldade de rezar com o rito litúrgico em si.
            A emoção sempre está presente na Liturgia. Quando esta desaparece, a celebração litúrgica torna-se apática, morna. Mas é uma emoção que necessita tender ao sentimento. Não somente a emoção da paz, mas que a paz se instale como sentimento cada vez que se celebre a Liturgia, especialmente a Eucaristia. Não somente a emoção da alegria, mas que a celebração seja envolvida pelo sentimento da alegria espiritual. E assim se espera com a oração; não só a oração emocionada, mas a oração como sentimento que brota do coração do celebrante, do centro de sua vida e se expressa como vida.
Para isso, primeira condição consiste em entender a celebração, do ponto de vista orante, como oração comunitária, na qual se reza como Igreja; não tem sentido, por exemplo, alguém ficar rezando o terço durante a Missa. A Liturgia, enquanto ato celebrativo, é oração da Igreja — ênfase em ser oração da Igreja — e por isso, pertence a toda a comunidade eclesial e não seja trocada por espiritualidades de grupos ou movimentos. Sempre se reza a Liturgia como Igreja, embora se reconheça que o modo de celebrar possa ter características específicas; algumas espiritualidades cantam mais outras preferem celebrar silenciosamente, por exemplo. Não existe, portanto, o bonito e o feio, o chato e o agradável, mas modos diferentes de rezar celebrando.
Quando se fala que a Liturgia é a oração da Igreja, entende-se que a Liturgia caracteriza-se como a oração do Corpo Místico de Cristo, no qual é o próprio Jesus que reza e torna cada celebrante um participante de sua oração filial ao Pai. Este é um dos motivos pelo qual a Igreja orienta e estabelece como celebrar a Liturgia, em vista de favorecer a dimensão comunitária da celebração e não o sentimento pessoal (nem mesmo do padre) ou de algum grupo. A individualidade orante ou a coletividade orante de um grupo, na ação celebrativa litúrgica, não é anulada, mas associada ao Corpo Místico de Cristo, do qual ele é a cabeça e cada celebrante, individualmente, é membro vivo (1Cor 12,27). Deduz-se, portanto, que a celebração Litúrgica sempre é ato orante da Igreja, da qual cada celebrante participa como membro vivo, com sua vida individual.
Serginho Valle
Junho de 2019


1 de jun. de 2019

Participação dos fiéis na Liturgia

Todos os celebrantes, fundamentados na Teologia do Sacerdócio Comum dos Fiéis, têm o direito e o dever de participar ativamente da Liturgia da Igreja, em suas celebrações. Inspirando-se na etimologia da palavra “participação” — “pars + in + actio” — que se traduz como “tomar parte”, “estar presente na atividade”, se “fazer presente”, entende-se a participação litúrgica, num primeiro momento, como acolhimento e presença física dos celebrantes na celebração.
Uma segunda compreensão de participação é aquela que se denomina “participação ativa”, entendida como envolver-se na celebração, cantando, rezando, silenciando... estar presente na atividade celebrativa naquilo que compete a cada um, seja em nível ministerial que assemblear. No caso da celebração Eucarística, por exemplo, isso é claramente determinado na Instrução do Missal Romano (IGMR
Do ponto de vista da espiritualidade litúrgica, compreende-se a participação como inserção — aquele que está inserido, que toma parte — no Mistério Pascal de Jesus Cristo. Trata-se de inserção pessoal e comunitária. Participa-se do Mistério Pascal de Jesus de modo pessoal e também como membro de uma comunidade. Disto a necessidade enfatizar a compreensão da participação em seu primeiro aspecto, aquele de se fazer presente para ser envolvido no clima celebrativo, que sempre é clima epiclético, isto é, animado pelo Espírito Santo. Dito em outras palavras, a participação, do ponto de vista da espiritualidade litúrgica, pede a participação “in persona” (da pessoa) para que seja santificada; para que participe da atividade santificadora do Espírito Santo na Liturgia.
Na segunda compreensão de participação litúrgica, aquela ativa, no contexto da espiritualidade litúrgica, também esta coloca a condição de se fazer presente. Hoje, existe toda uma discussão sobre o conceito de presença na Liturgia pelos meios de comunicação social. Para a presente reflexão, quero apenas chamar atenção ao fato que é o Espírito Santo que une a oração comum de todos os fiéis. É o Espírito Santo que torna a oração agradável ao Pai e favorece a compreensão que a Liturgia não é presbiteral, no sentido que o padre seja seu único protagonista por presidir a celebração, mas pertence a toda a assembléia celebrante. Isto é bem compreendido quando se define a Liturgia, no contexto da sua espiritualidade, como atividade espiritual — atividade do Espírito Santo — com a participação de todo o Corpo Místico de Cristo.
É pela Liturgia que a Igreja se manifesta como comunidade orante diante do mundo e invocadora incansável da presença divina na terra, como ensinado pelo próprio Jesus que, onde dois ou três estiverem reunidos — estiverem participando — em seu nome de uma súplica ao Pai, ele ali está presente (Mt 18,20), ali “ele está no meio de nós!”
Serginho Valle
Maio de 2019


18 de mai. de 2019

Dimensão orante da Liturgia

Dentre as várias dimensões presentes na Liturgia, a dimensão orante ocupa certo destaque por considerar a Liturgia como a oração da Igreja; oração celebrada na Igreja e pela Igreja. É no contexto da dimensão orante que, de modo natural, podemos dizer, vincula-se uma dimensão central da espiritualidade litúrgica. Nesta breve reflexão, duas dimensões que fazem da Liturgia uma escola de oração e a principal escola da espiritualidade da Igreja

Jesus Reza Conosco Na Liturgia
Jesus fez de sua vida uma oração constante e nunca interrompida com Deus, a quem chama de Abba (Pai). Agora, a oração filial de Jesus continua por nós e em nós, como diz Santo Agostinho, na e pela Liturgia. Assim sendo, podemos descrever a Liturgia como ação orante, como atividade orante pela qual a Igreja, Corpo Místico de Cristo, reza ao Pai com uma prece constante e nunca interrompida, oferecida por Jesus ao Pai, nosso sumo e eterno sacerdote mediador.
A este propósito, vale a pena lembrar que o Papa Paulo VI introduz a reforma da Liturgia das Horas, na Constituição Laudis Canticum, com uma orientação importante que nos ajuda a compreender a dimensão orante da Liturgia: “o cântico de louvor que ressoa eternamente nas moradas celestes, e que Jesus Cristo, Sumo Sacerdote, introduziu nesta terra de exílio, foi sempre repetido pela Igreja, durante tantos séculos, constante e fielmente, na maravilhosa variedade de suas formas."
São Paulo VI está dizendo que a oração da Igreja, entendida como Oração Litúrgica, continua a oração “das moradas eternas”, trazida por Jesus à terra. É uma oração, portanto, vinculada à oração celeste, feita diante do trono divino.

A Igreja reza a liturgia – a Igreja reza com a Liturgia
            Outro aspecto da dimensão orante está no fato que a Liturgia é a oração da Igreja e é a oração com a qual a Igreja reza. Note-se que com esta afirmação não se está excluindo a oração pessoal, que é também uma forma orante da Igreja e na Igreja. Ao afirmar que a Igreja reza a Liturgia e reza com a Liturgia entende-se que cada celebração litúrgica, seja em que parte da terra estiver, é celebrada por toda a Igreja e como Igreja Corpo de Cristo que se reúne em assembléia para louvar o Pai. Neste aspecto, a Igreja jamais deixa de rezar, deixa de ser orante diante de Deus.
Em tal contexto orante, como conhecemos pela prática, vários são os modos pelos quais se exercita a oração litúrgica, sempre considerada como oração celebrativa. Isto, reforçando, acontece em todas as celebrações sacramentais, porque as celebrações sacramentais não são apenas ritos funcionais e fáticos, mas também orantes e, igualmente, são celebrados em clima orante.
            Na perspectiva orante da Liturgia serve um destaque à Liturgia das Horas, com a finalidade de santificar o dia pela oração. A Liturgia das Horas é uma celebração litúrgica que se serve essencialmente da Palavra de Deus para rezar a Deus com louvores, meditação e súplica. Sendo oração celebrada, entende-se que aconteça no contexto de uma assembléia orante, mas pode ser recitada individualmente, especialmente na forma do Ofício das Leituras.
Serginho Valle
Maio de 2019


27 de abr. de 2019

Criatividade litúrgica

A Liturgia acontece e se realiza concretamente na celebração com uma assembléia, por isso seria equívoco reduzi-la a textos e a normas, mesmo sendo parte da legislação litúrgica. A “actio liturgica” é a Liturgia em ato, na sua forma natural de acontecer e de ser celebrada. Por isso dizemos que a Liturgia pertence mais ao fazer, configurada na fala, no ouvir (silêncio), em gestos, em símbolos e sinais, espaços... que às prescrições para que seja bem celebrada. As normas litúrgicas — e disto a sua importância — servem para organizar e orientar a atividade litúrgica e garantir a ortodoxia da fé da Igreja nas celebrações. Em outras palavras, a Liturgia pertence à Igreja e é celebrada como Igreja. Não é uma atividade subjetiva ou pertencente a um grupo.
            Neste contexto é possível considerar aquilo que se denomina de “criatividade litúrgica”. Termo nem sempre compreendido e bem utilizado em nossas comunidades.
A criatividade litúrgica não se situa na criação da novidade que impressiona ou é usada unicamente para provocar emoções na linha do sentimentalismo. Criativo, no contexto teológico e na Pastoral da Liturgia, não é aquele que inventa moda nas celebrações, agindo individualmente, fundamentando-se na teoria de “o povo gosta”. A criatividade litúrgica tem a finalidade de ajudar a celebrar melhor para conduzir os celebrantes ao encontro de Deus e ao compromisso com o seu projeto divino. Por isso, a “criatividade litúrgica”, como a Igreja a entende, requer conhecimento profundo da Teologia Litúrgica. Criatividade não combina com infidelidade às normas litúrgicas e nem aborrece a assembléia com encenações, ritos exóticos, cantorias e excesso de símbolos. A criatividade na Liturgia jamais extrapola, ao contrário, sempre favorece a oração e a compreensão do que se celebra.
A criatividade litúrgica não se preocupa em “inventar para atrair” e para agradar os celebrantes, mas em se servir da palavra, da música, dos gestos, do silêncio... de todo o processo da comunicação litúrgica, em suma, para favorecer nos celebrantes a sintonia com Deus, em clima de oração e, para isso, não se serve de linguagens conotativas do teatro, de palestras intermináveis, de shows e de outros pendulicários.
Serginho Valle
Abril de 2019



6 de abr. de 2019

A Eucaristia é "fractio panis"

Um bom modo para compreender a Eucaristia encontra-se num dos seus primeiros nomes: “fracio Panis”. No início da história da Igreja, o nome dado à Missa, à celebração da Eucaristia, era “fractio panis”. Termo latino que se traduz como “fração do pão”.
            O rito da “fractio panis”, na nossa Liturgia Eucarística, acontece pouco antes do rito da Comunhão Eucarística e é acompanhado pela invocação do Cordeiro de Deus. Trata-se de um rito litúrgico cantado — nem sempre respeitado em nossas celebrações — que descreve aquilo que o gesto da fração do pão representa: Jesus é o Cordeiro de Deus que oferece seu corpo para ser partilhado, repartido entre nós. É um gesto que descreve o sentido profundo da Eucaristia como doação da vida divina, que se reparte, que é partilhada, para que todos se tornem um só corpo em Cristo Jesus.
Um gesto tão importante nem sempre com a valorização que deveria ter nos ritos da Missa porque muitos padres o fazem com os celebrantes realizando o rito da paz; proclamam o Cordeiro de Deus sem a fração do pão e com o padre fazendo a genuflexão preparatória para apresentar o Corpo e o Sangue de Jesus aos celebrantes. Em resumo: um amontoado de ritos que perdem seu sentido na pressa.

O que era a “fractio panis”?
            A “fractio Panis”, nos tempos antigos, era um gesto familiar que Jesus transformou em sacramento da doação da própria vida. Antes de qualquer refeição familiar, o pai de família tomava o pão em suas mãos, dava graças pelo alimento que Deus concedia à sua família, fruto do seu trabalho, partia o pão e entregava à sua esposa, aos filhos e a quem participava da mesa. Em sua família, Jesus via este gesto realizado por São José. Depois da morte de José, Jesus tornou-se o encarregado familiar para realizar o rito. Um rito que, possivelmente, ele também celebrou muitas vezes com seus discípulos e discípulas. Na Última Ceia, o gesto da “fractio Panis” foi transformado em gesto sacramental memorial.

Eucaristia como partilha da vida divina
A Eucaristia torna-se mais bem compreendida a partir do pão, que é o fruto do trabalho humano, como diz a oração da apresentação das oferendas; pão que serve para alimentar a vida humana. A fração do pão representa — no sentido de re+presente, isto é, de tornar presente — a partilha da vida. Aquele pão que é fruto do trabalho de todos que participam da comunidade celebrativa Eucarística, torna-se santificado pela presença de Jesus e, deste modo, santifica e une todos que participam do mesmo altar.
Com o mesmo gesto diário de repartir o pão em nossas mesas, não somente nos tempos Bíblicos, mas no nosso hoje, Jesus colocou ali a sua vida, para que o pão repartido no altar seja alimento divino para a vida humana.
Com este mesmo gesto, a Eucaristia alcança as mesas de nossas casas, fazendo com que o simples gesto do pai e da mãe que colocam o pão na mesa para ser repartido em família, torne toda refeição momento de ação de graças a Deus. Eis um sentido que deveríamos recuperar em nossas comunidades, ajudando as famílias a compreender a Eucaristia como rito da família de Deus que comunga a mesma vida divina e, de outro lado, favorecer a compreensão que cada refeição em família é momento “Eucarístico”, momento de ação de graças a Deus porque ali se partilha o pão, partilha-se a vida.
Deste modo, repetindo, um dos melhores modos para compreender a Eucaristia é a partir de um dos seus primeiros nomes: “fractio panis”. Como canta a poesia da música de Pe. Zezinho,scj: “somos a Igreja do pão, do pão repartido, do abraço e da paz”.
Serginho Valle
Abril de 2019


30 de mar. de 2019

O serviço divino na Semana Santa

A auto apresentação de Jesus como aquele que veio para servir e não para ser servido (Mt 20,28) encontra seu momento alto e sua plena realização na sua Páscoa ritual (5f Santa), na sua Páscoa dolorosa (6f Santa) e na sua Páscoa gloriosa (Sábado Santo e Domingo da Páscoa). Uma reflexão sobre o serviço divino, exercido por Jesus Cristo, nas principais celebrações da Semana Santa.



Jesus, o servo obediente de Deus
            O tema do serviço é totalmente pertinente na reflexão da Semana Santa. Está presente na Palavra do Domingo de Ramos, apresentando Jesus como servo obediente que, pela obediência ao projeto do Pai, fez da sua vida terrena um serviço em favor da vida humana. É o próprio Jesus que se apresenta como alguém que veio para servir e não para ser servido (Mt 20,28). Tal disposição de servir está simbolizada na sua entrada em Jerusalém, no Domingo de Ramos, montado num jumentinho, animal servidor, cooperador nos trabalhos diários das pessoas, no tempo de Jesus e, ainda hoje, em muitas partes do mundo.
            A cena de Jesus entrando em Jerusalém montado num animal de serviço simboliza sua atividade servidora e indica o serviço como alternativa ao poder social. Não o poder da dominação, que cria classes entre servidores e servidos, mas o poder pelo serviço, que cria relacionamentos de ajuda mútua pela fraternidade.
            Noutro momento da Semana Santa, o serviço divino realizado por Jesus está simbolizado no rito do lava-pés. Na Quinta-feira Santa, Jesus ritualiza a vida cristã no gesto de lavar os pés de seus discípulos, com a recomendação para fazer o mesmo que fizera (Jo 13,15). Neste mesmo contexto, outro gesto coloca em evidência a amplitude deste serviço como doação da vida: o gesto da “fractio panis”; um gesto doméstico que Jesus transformou em sacramento da doação da sua vida divina para todos os tempos e em todas as partes da terra.
A “fractio panis” favorece a compreensão da Eucaristia em relação ao pão como fruto do trabalho humano e como necessário para alimentar a vida humana. Símbolo do que é essencial para a existência humana. A fração do pão representa a partilha da vida, a partilha do trabalho humano, não com o fim egoísta do enriquecimento, mas como promoção da vida partilhada entre todos. O gesto diário de repartir o pão, fruto do trabalho humano, em nossas mesas, é usado por Jesus como doação da vida divina no altar, local onde se oferece a Deus um sacrifício santo e agradável, mesa onde é repartido o Pão da vida e o Cálice da Salvação.
Aquilo que Jesus realiza ritualmente, na Última Ceia, é vivenciado no seu corpo em sua Paixão e Morte. É a entrega plena da sua vida, presente no seu corpo, como oferenda (sacrifício) ao Pai. Na Paixão de Jesus, o amor divino torna-se serviço na doação da vida divina em vista da plenitude da vida humana. A Palavra da Sexta-feira Santa, no contexto do serviço, ilumina-se no servo sofredor; alguém que se faz servidor da humanidade acolhendo a vontade divina, e por causa disso, passa, faz sua passagem (faz sua Páscoa) pelo sofrimento humano. Gesto compreendido como serviço obediente ao Pai, simbolizado no “servo sofredor” de Isaias (Is 52,13—53,12).
A obediência é um aspecto natural de quem se faz servo. Todo servo fiel é servo obediente, alguém que acolhe a vontade do seu Senhor. Assim viveu Jesus. E assim podemos mensurar a grandeza e a profundidade da obediência de Jesus ao projeto do Pai. Tamanha foi sua obediência, tamanha sua fidelidade que aceitou passar (fazer sua Páscoa) pela morte de Cruz, considerada morte ignominiosa.

A reação divina
            Todo este conteúdo, teologicamente compreensível, causa dificuldades do ponto de vista humano. O conhecido questionamento — por que Deus, que é bondoso e misericordioso, permitiu que seu Filho morresse? — enfraquece-se na Teologia do Servo Sofredor; na Teologia do Serviço. Os servos de Deus, na Bíblia (e fora da Bíblia), sempre se confrontaram com o sofrimento humano e, muitos deles, com a morte, com o martírio. A causa está em Deus ou na dificuldade humana de acolher o projeto divino? Ou de se incomodar com o projeto de divino, a ponto de causar sofrimento aos servos de Deus?
            Outro questionamento: a reação divina. Como Deus reage diante da morte do seu Filho ao expressar seu sentimento de abandonado pelo próprio Pai (Mt 27,46)? A resposta está na Vigília Pascal e no Domingo da Páscoa: a reação divina é a Ressurreição; a destruição da morte.
A Páscoa de Jesus é a passagem pela morte; passagem como indicativo de não permanência. Deus não deixou Jesus na morte; ele desce e passa pela "mansão dos mortos", mas lá não permanece; passa pela mansão dos mortos e lá derrota a força da morte com a sua Ressurreição. O início da Vigília Pascal ritualiza esta passagem da escuridão da noite para a iluminação da luz da Ressurreição simbolizada no fogo novo. A Páscoa de Jesus é a luz divina para o mundo.
Serginho Valle
Março de 2019


23 de mar. de 2019

Lembrando duas fontes da Liturgia

De tempos em tempos, como que folheando um álbum de fotografias, é interessante e importante relembrar algumas fontes da Liturgia, como por exemplo, o fato que nossa Liturgia ter sido criada pelos Apóstolos e pela Igreja primitiva, a partir das instruções do Senhor Jesus.
            Nesta lembrança, não se pode esquecer que tanto Jesus como os Apóstolos, vinham de um povo que sabia rezar, que dedicava momentos do dia a oração ritual e pessoal. Lembramos que nossa Liturgia nasceu e cresceu num contexto orante; no contexto de uma comunidade orante. A Liturgia da Igreja nasceu bebendo na fonte da oração e isto determina uma das mais importantes características da celebração litúrgica: ser momento de oração comunitária eclesial. Trata-se de reiterar aquele predomínio orante da Liturgia, no sentido que somos uma Igreja que se reúne em Liturgia para rezar.
            Uma segunda recordação lembra a língua usada na Liturgia. A primeira língua usada na Liturgia cristã foi o aramaico, depois o hebraico e, logo em seguida se adotou o grego. Jesus e os Apóstolos falavam aramaico e, logicamente, os Apóstolos adotaram o aramaico em suas celebrações litúrgicas e em seus momentos de orações. Nem passava pela cabeça deles que pudesse se impor uma língua oficial para celebrar e louvor a Deus. A adoção do hebraico e do grego seguiu o mesmo critério: celebrar e rezar com a língua que era falada naquela sociedade, naquela cultura onde a Liturgia era celebrada e rezada. A língua que cria relacionamentos sociais é a mesma língua para se entrar em contato com Deus.
Com o crescimento do cristianismo em Roma e, porque os cristãos romanos não entendiam grego, passou-se para o latim. Sempre com o mesmo critério: facilitar a compreensão dos celebrantes para celebrar de modo compreensível. A passagem do grego para o Latim, dizem as fontes históricas, aconteceu com o Papa Damaso.
Adotando o critério da compreensibilidade celebrativa pela língua, nada mais coerente que cada cultura e cada país celebre e reze a Liturgia em sua própria língua. Assim, todas os povos e todas as línguas da terra louvam e intercedem a Deus que compreende todas as línguas da terra. Houve uma certa demora para se compreender isso na Igreja. Depois de vários séculos celebrando a Liturgia em latim, somente em 1963, com o Concílio Vaticano II, a Liturgia passou a ser celebrada na língua de cada nacionalidade, embora ainda conserve o latim em suas celebrações e em seus documentos rituais.
Serginho Valle
Março de 2019


16 de mar. de 2019

O poder do serviço celebrado na Liturgia

Quem lida com PL conhece a etimologia da palavra “Liturgia”: serviço; serviço prestado ao povo. Liturgo é alguém que se dedica a servir o povo, diz o primeiro volume da coleção Anàmnesis. A prioridade do serviço litúrgico, sendo redundante nos significados, pertence a Deus. É Deus que, na Liturgia e pela Liturgia, dedica-se a servir seu povo. Jesus é o “diácono” divino, o servidor de Deus e dos homens. É a Liturgia como “Opus Dei”, o serviço de Deus. São noções que nos situam na proposta serviçal contida na Liturgia.
A resposta humana ao serviço divino acontece em duas atividades. Primeiro pelo serviço laudativo e glorificador que a Igreja celebrante eleva a Deus; é o “sacrificium laudis” (sacrifício, no sentido de “oferta”; o louvor é um sacrifício, é um dom oferecido a Deus). O segundo momento deste serviço acontece no cotidiano da vida de cada celebrante que transforma sua vida em serviço fraterno. É o “sacrificium vitae”, a oferta da vida que acontece concretamente pelo serviço. A origem deste segundo elemento encontra-se na Instituição da Eucaristia, no gesto do lava-pés: “eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo” (Jo 13,15).
Sobre este segundo elemento, uma anotação, em passant, que serve como exemplo. Ouve-se muito, nas Missas, o convite para oferecer a vida no momento das apresentações das oferendas. Está certo, mas a concretização deste ofertório só acontece na atividade prática de quem se coloca a serviço. Não se trata, portanto, de um rito emocional, que se conclui com um sentimento de gratidão, na celebração. Este rito de oferecer a vida só se completa em que viver servindo, a exemplo de Jesus que veio para servir e não para ser servido (Mt 20,28). Nenhuma celebração litúrgica está completa somente no rito celebrativo porque toda celebração conduz para a vida e a vida leva à celebração.

Serviço como alternativa do poder
Outro exemplo referente ao segundo elemento, considerando uma questão prática do envio celebrativo, especialmente na Eucaristia: a Liturgia sempre envia seus celebrantes a viver em contexto de serviço fraterno. É uma proposta que tem embutida uma atitude transformadora da ordem social, que irá se refletir nos relacionamentos sociais.
A sociedade, como sabemos, é regida por vários poderes, como o poder político, o poder financeiro, o poder da mídia... A Liturgia, em suas celebrações, propõe o “serviço” como alternativa ao poder que rege a vida social. Todos os poderes do mundo fundamentam-se na competição e na lei que os fortes vencem e dominam. Aquele ensinamento de Jesus “entre vós não seja assim...” é continuamente repetido em todas as celebrações litúrgicas: “quem dentre vós quiser ser o primeiro, seja seu servidor” (cf. Mt 20,25-28). Ou seja, a Liturgia propõe um poder alternativo, não fundamentado no exercício do domínio, mas em se colocar diante do outro disposto a servir fraternalmente. Este um o poder transformador dos relacionamentos sociais. É o segredo da transformação social.
Entende-se, neste contexto, que a Liturgia não comporta espaço para comícios políticos, embora possa propor critérios para escolha de lideranças sociais, iluminando-se no conceito evangélico do serviço. Um desses critérios, critério primário, por ser o mais importante, é o serviço à vida. Em toda celebração litúrgica a vida sempre está presente, seja na sua Eucologia, seja em ritos, seja na simbologia sacramental... Vida plena, vida em abundância, no dizer de Jesus (Jo 10,10). Ora, quem participa desta vida abundante na Liturgia torna-se divinizado, comprometido em partilhar esta mesma vida, no cotidiano da sua existência, pelo serviço fraterno. A Liturgia é a escola do serviço fraterno que sempre compromete os celebrantes com a promoção da vida plena. Claro que isso só é possível se a Liturgia for completa, quer dizer, celebração e atitude existencial.
Disto, a minha repetida proposta que o envio celebrativo, particularmente o envio Eucarístico, deveria ser: “vai e faze tudo o mesmo” (Lc 10,37). É o envio ao serviço fraterno, iluminado na misericórdia, presente na parábola do Bom Samaritano. Fazer o mesmo que Jesus e fazer como Jesus, para que a Liturgia seja completa: seja celebração e atitude de serviço fraterno.
Serginho Valle

Março 2019
← Postagens mais recentes Postagens mais antigas → Página inicial