27 de jul. de 2019

A comunicação e a linguagem multisensorial da Liturgia

A Liturgia não é uma sessão de verbalizações sobre Deus, uma espécie de palestra ou de conferência de temas religiosos ou de autoajuda com fundamentação bíblica. A Liturgia é celebração e seu elemento concreto, aquilo que faz a Liturgia acontecer na celebração, é a arte de saber se comunicar com uma linguagem multisensorial.
A celebração litúrgica é uma arte que toca todos os sentidos. Podemos dizer, em termos comparativos, que a pintura e a fotografia, por exemplo, comunicam-se pela luz, atraindo o olhar. A escultura pode ser tocada; arte que se serve da visão e do tato. A música é uma arte que passa pelos ouvidos, não pelo olhar, e convida o corpo a dançar. E assim com a linguagem de outras artes.
O processo comunicativo na Liturgia desenvolve-se com uma linguagem multisensorial porque toca, atinge, coloca em movimento, todos os sentidos. Num rito de ingresso (procissão inicial), por exemplo, comunica-se com a arte visual — símbolos levados na procissão de entrada — com a arte musical — canto que acompanha a procissão de ingresso — com a arte cinésica — caminhar até o altar — com a arte gestual — inclinação ao altar e beijo no altar —. Por isso, só no rito inicial podemos perceber o envolvimento de várias competências comunicativas. No decorrer da celebração, aparecem outras mais.
Tratando-se de arte comunicativa, estamos falando de competências para que a mensagem chegue e, mais que isso, atinja a vida dos destinatários. Competência para que o ingresso do rito inicial de uma Missa, por exemplo, seja de fato uma procissão e não um desfile com padre e ministros cumprimentando distribuindo acenos. Que os músicos tenham a competência de não abafar a voz dos celebrantes, mas saibam tocar seus instrumentos e cantar de tal modo que a voz da assembléia ressoe no interior da igreja. O símbolo da Cruz Processional, do Evangeliário, as velas... sejam símbolos bonitos, atraentes, dignos, despertadores de respeito e reverência.
Esta exposição, contemplado mesmo que superficialmente apenas os ritos iniciais, denota a necessidade de competências para se comunicar com a arte da comunicação litúrgica. Celebrar com arte é se servir de várias linguagens artísticas que atingem todos os sentidos dos celebrantes que, por sua vez, não são meros assistentes — para quem se apresenta a Missa a uma platéia —, mas participantes ativos de todo este processo comunicativo. Participação na arte que favorece nos celebrantes o ouvir, ver, sentir, tocar, degustar, cantar, silenciar... Querer transformar a celebração em falatórios, acumulando explicações de explicações, para explicar o Mistério, dificulta, ou até mesmo impede, o processo de acolher a mensagem sem alguma indicação verbalizada. A linguagem artística não se comunica somente com palavras e não é dirigida somente ao intelecto, mas passa fortemente pelo sentimento e atinge a vida.
Em resumo, não se pode transformar a celebração em falação. A comunicação verbal tem prevalência, mas como oração e com algumas (breves) monições, não em forma de explicações ou e menos ainda com minissermões. A homilia, entendida como momento da partilha da Palavra, é breve, entre 8 e 10 minutos no máximo. Todos estes fatos favorecem compreender que a linguagem litúrgica é uma linguagem artística, que carece de explicações quando comunicada com competência.

A linguagem artística da Liturgia
Não tenho receio de definir a comunicação litúrgica como uma bela obra de arte que se comunica com diferentes linguagens. Muitas delas compreendidas unicamente pela experiência — no sentido de envolvimento — na participação ritual. Por isso, as explicações de Missa parte por parte, por exemplo, favorece muito pouco a compreensão Litúrgica do ponto de vista comunicativo. Sendo a linguagem litúrgica uma linguagem artística, o foco não está na compreensão do que se faz, mas no como se faz para atingir a vida dos celebrantes. Na comunicação da arte, a compreensão não acontece por explicações, mas pelo contato com a emoção e com o sentimento que repercute na vida pessoal promovendo algum significado.
Não se pode deixar de falar que, hoje, existe um exagero neste aspecto de usar a linguagem litúrgica focando unicamente no emocional: fechar os olhos, tocar no coração, levantar os braços, música de fundo, apagar a luz... Não existe comunicação artística sem a emoção, mas focá-la exageradamente na emoção, do ponto de vista da comunicação litúrgica, é ruidoso. O mesmo se diga daquelas celebrações que se canta o tempo todo. A música é uma linguagem artística importante na comunicação litúrgica, mas quando se exagera e se inflaciona a celebração com canções, existe ruído. Quando se exagera na simbolização, existe ruído; quando se exagera na verbalização existe ruído. E assim com todas as linguagens. A comunicação artística é discreta. Você se coloca diante de um quadro, por exemplo, de uma bela obra de arte, e comunica-se com o quadro permitindo que as luzes das cores penetrem em você e, pouco a pouco, timidamente, acorde sentimentos e emoções que passam a ter sentido, que ganham significado ao entrar em contato com a sua vida. Aqui temos um processo ideal na comunicação litúrgica. Uma comunicação artisticamente discreta que faz significado na vida sem qualquer tipo de imposição verbal, intelectual, emocional...
Celebra bem quem se comunica discretamente com a linguagem artística sem se preocupar com conteúdos e com efeitos. Proponho, neste sentido, agir como pintor, que propõe discretamente sua obra, o seu quadro, permitindo que cada destinatário encontre no quadro um significado diferente, de acordo com sua experiência existencial.
Serginho Valle
Julho de 2019

20 de jul. de 2019

Linguagem simbólica na Liturgia

A arte de comunicar-se bem consiste no conhecimento e na prática da linguagem. Um bom músico só se comunica bem quando conhece a linguagem e tem prática, depois de muito treino e ensaio, com seu instrumento. Assim como o músico precisa conhecer o instrumento, conhecer a linguagem e a técnica para bem se comunicar, o mesmo acontece com quem se dedica à arte da comunicação litúrgica: necessita conhecimento da linguagem litúrgica.
            Ao se tratar da linguagem litúrgica, estamos falando de uma linguagem complexa ou, melhor dizendo, da multilinguagem que compõe o processo comunicativo litúrgico presente na prática celebrativa. Estou falando da linguagem da música, linguagem oral, linguagem visual e, dentre outras, da linguagem simbólica. Este conjunto de linguagens faz com que a Liturgia situe-se no contexto de comunicação artística. Por isso, é preciso conhecimento e senso artístico para se comunicar bem com a comunicação litúrgica. Neste processo comunicativo artístico, que permeia toda celebração litúrgica, meu aceno vai para os símbolos e sinais na ação litúrgica.
Quando as palavras não conseguem dizer tudo, então se recorre aos símbolos. Isto acontece muito na comunicação litúrgica ao fazer amplo uso da linguagem simbólica. A Liturgia acontece num contexto simbólico, como é o fato de nossas igrejas, que não são salões com palcos, mas arquitetura simbólica que abriga a celebração litúrgica. Todas as celebrações sacramentais são realizadas com símbolos e com gestos simbólicos. Nisto inclui simbolismos do vestuário, como os paramentos e as vestes ministeriais, simbolismos gestuais, como os gestos orantes, as posições corporais... tudo com significados simbólicos. A comunicação litúrgica não é “falatória” e muito menos “falação”, é uma comunicação dinamicamente simbólica e significativa. Por isto, a necessidade de conhecer o que significa cada símbolo e cada sinal para celebrar com dignidade e faticamente.
O código simbólico litúrgico é complexo e traz consigo uma bagagem de séculos de Tradição e de tradições. Sim, Tradição com o “T” maiúsculo, indicando a “Traditio” que se fundamenta na Palavra e no patrimônio sacramental simbólico eclesial formado no decorrer dos séculos e, as tradições com “t” minúsculo, composto de ritos introduzidos em épocas culturais. Por isso, repetindo, a linguagem simbólica litúrgica é riquíssima e, ao mesmo tempo complexa. É uma linguagem essencialmente artística e, por isso, quando não bem feita sabota a celebração com comunicações ruidosas.

Celebrar com símbolos e sinais
A complexidade da linguagem simbólica e sígnica da comunicação litúrgica exige conhecimento, arte e, uma coisa que às vezes se esquece, simplicidade que, no caso, tem a ver com a medida certa. O excesso de sinais e símbolos torna-se ruído no processo comunicativo litúrgico. É uma comunicação que precisa ser bem dosada. O excesso de símbolos e sinais, além daqueles que são próprios da celebração litúrgica, por exemplo, torna a celebração litúrgica pesada, longa, cansativa e provocadora de distração. De outro lado, a ausência de símbolos e sinais, a torna áspera, sem atrativo, seca e, sem receio de afirmar, a torna vazia, sem graça. A comunicação simbólica litúrgica distingue-se pela simplicidade discreta, que a faz comunicativamente bela.
Para isso existe um critério que precisa ser levado em conta. O critério do “reconhecimento”. Uma das tantas definições e funções de sinal e símbolo, válidos especialmente para a comunicação litúrgica, é aquela do reconhecimento. O argumento do “reconhecimento” fundamenta o gesto celebrativo simbólico mais emblemático presente na Liturgia Eucarística: “eles o reconheceram ao partir o pão” (Lc 2431). O gesto simbólico de partir o pão, feito com o símbolo do pão, revela a presença (o reconhecimento) do Senhor. Os discípulos reconhecem no simbolismo do pão e no gesto simbólico de repartir o pão na mesa, a presença de Jesus. Disto podemos concluir que encher a celebração de sinais e símbolos, com explicações e mais explicações para cada sinal e símbolo, é ruído comunicativo; é chato, é sinônimo de celebração com tempo psicológico interminável. A inflação da “simbolomania” é prejudicial para a comunicação litúrgica.
Voltando ao que se dizia, para introdução de símbolos ou sinais na celebração adote-se o critério do “reconhecimento”. Usar símbolos e sinais, nos quais os celebrantes reconhecem a presença do Senhor na vida cotidiana. E para isso, a necessidade de conhecimento e da arte de bem se comunicar com a linguagem litúrgica e, mais ainda, o conhecimento da compreensão simbólica dos celebrantes.
Serginho Valle
Julho de 2019


13 de jul. de 2019

Aprender a celebrar celebrando: a sensibilidade celebrativa

A vivência da Liturgia acontece pelo fazer celebrativo. É celebrando que se aprende a celebrar adequadamente com os princípios e as normas litúrgicas e, principalmente pela prática ritual da linguagem litúrgica, possibilitando uma comunicação litúrgica eficaz. Para isso é necessário experiência e conhecimento da linguagem litúrgica, que produz competência, conhecimento, zelo pela celebração, sensibilidade litúrgica e sensibilidade celebrativa.
            A questão da sensibilidade é de vital importância, seja a sensibilidade litúrgica como a sensibilidade celebrativa. Sensibilidade tem a ver com sentido, com sentimento. Aqui é preciso uma distinção psicológica entre sentimento e emoção. A sensibilidade celebrativa, por exemplo, não se limita à reação emotiva, mas tem a ver com sentimento, com aquilo que não é apenas efervescência emocional, mas com aquilo que permanece, que compromete, que se transforma em vida. A sensibilidade tem, sim, o seu lado emotivo, emocional, que toca a pessoa no durante celebrativo, também pelo fato de a linguagem litúrgica ser linguagem artística, mas não pode parar nisso, precisa tornar-se sentimento, algo permanente na vida como amor, misericórdia, caridade, compaixão, bondade...
            A sensibilidade litúrgica e a sensibilidade celebrativa estão presentes na atividade da Liturgia prática que, em sua prática, é celebrativa, é comunicação que envolve emoção e sentimento. Para isso se exige, seja da parte de quem preside como da parte dos celebrantes, um aprendizado que acontece pelo “aprender a celebrar celebrando”. Se os celebrantes — presidente e assembléia — penderem unicamente para o emocional a celebração fica defasada, porque emociona, mas não compromete a vivência; toda celebração é comprometedora, compromete os celebrantes com aquilo que celebram. Disso, a sensibilidade da equipe de celebração, mas muito especialmente do padre, para celebrar com emoção para se poder cultivar sentimentos comprometedores.
Celebrar liturgicamente não se resume a uma simples técnica, de realizar corretamente os ritos previstos pela Igreja. Claro que isto é importante. A celebração litúrgica tem a ver com sensibilidade e, por isso, “aprender a celebrar celebrando” dando vida aos ritos em momentos que emocionam — para que os ritos não sejam frios e vazios, nem tediosos e chatos — e se consolidem em sentimentos profundos próprios do Coração divino, que se transformam em vivência pelo discipulado e pelo testemunho cristão.
Serginho Valle 
Julho de 2019

6 de jul. de 2019

A Liturgia na vida do sacerdote

O padre, porque lida com as coisas de Deus, deve estar próximo de Deus para partilhar a vida divina com quem celebra os sacramentos, os momentos de oração ou ritos de piedade (bênçãos, funerais, adoração ao Santíssimo...). Quanto mais intimidade com Deus o padre tiver, mais facilmente poderá conduzir os celebrantes ao encontro com Deus na celebração litúrgica.
            Deste pressuposto, pode-se dizer que não existe celebração mais ou menos bonita, porque todas se tornam bonitas quando o padre favorece nos celebrantes o encontro com Deus. Não se trata de criar, apenas, um clima emocional para despertar sentimentos fortes, mas de favorecer o encontro com Deus no modo de celebrar. E para isso, a santidade de vida do padre é imprescindível, particularmente manifestada pelo zelo e pelo carinho com que trata a Liturgia e como se coloca em oração quando preside as celebrações.
A santidade na vida sacerdotal é um exercício de contato com Deus que o padre procura realizar e viver diariamente e de diversos modos, seja pela caridade com todas as pessoas, seja pela sua vida de oração pessoal, seja pela fidelidade à sua vocação. No que se refere à Liturgia, entre tantas outras propostas, chamo atenção a três momentos de meditação relacionados à Eucaristia: antes, durante e depois da Missa.
Antes da Missa, como preparação, que pode ser feita pela Lectio Divina e pela reflexão das leituras do dia. Durante a Missa, aproveitando o silêncio depois da homilia ou o tempo silencioso quando não se faz homilia. Por fim, a oração depois da Missa, que poderá acontecer num breve momento de ação de graças pessoal, na igreja mesmo, ou num momento do dia. São momentos nutritivos da vida espiritual do sacerdote, ligados à Liturgia, para alimentar seu coração com a paz divina.
            A meditação, seja pela Lectio Divina, seja se servindo de outros métodos, é essencial na vida do padre, especialmente importante para seu ministério de guia espiritual da comunidade. Assim como o alimento material não alimenta e nem sustenta a vida se não for devidamente assimilado pelo corpo, assim o sacerdote não terá condições de caminhar em seu ministério se não se alimentar da Palavra de Deus. Faz parte da fidelidade ao seu ministério sacerdotal alimentar-se diariamente com a Palavra de Deus, para que tudo que disser e fizer seja iluminado e motivado pela Palavra divina. Isto ganha visibilidade nas homilias e no modo como celebra os sacramentos, como por exemplo, no aconselhamento e orientação de confissões, no conforto da celebração da Unção dos Enfermos, no modo de fortalecer a fé em situações de funerais, na maneira de propor a presença divina na celebração matrimonial, etc...
            Para concluir, uma última consideração: a importância da oração com a Palavra de Deus. A Lectio Divina cumpre tal finalidade, mas existe outra que gostaria de destacar e que considero importantíssima na vida do padre: a Liturgia das Horas. A pedagogia orante da Liturgia das Horas, de permear o dia em oração, é excelente e essencial na vida espiritual do sacerdote. Gostaria de fazer referência ao Ofício das Leituras, por ser uma oração, pela qual se entra em contato com a Palavra de Deus e com escritos espirituais dos Padres da Igreja. Dedicar de 15 a 20 minutos para recitar os salmos e deixar que eles cantem no seu coração é fonte de paz interior, momento de intimidade com o Senhor, condição necessária para descansar com o Senhor e alimento espiritual. O padre que aprende a rezar poeticamente com os salmos torna-se mais humano e mais sacerdotal por conviver todos os dias com a poesia humana transformada em oração e em Palavra de Deus.
Serginho Valle
Julho de 2019


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