A
Igreja tem registro de curas acontecidas durante celebrações litúrgicas. Hoje,
se faz propaganda de celebrações com promessas terapêuticas e curas físicas e
espirituais. Não se duvide que Deus possa agir no decorrer de uma celebração
litúrgica. Tenho participado de muitas curas espirituais no Sacramento da
Reconciliação e, até mesmo, curas físicas em celebrações da Unção dos Enfermos.
O mesmo aconteceu em celebrações Eucarísticas. Minha interrogação vai na
direção da pretensão de realizar celebrações com promessas de curas e milagres.
Considero que ninguém pode ter controle de pretender que Deus aja para curar “naquela
celebração”, marcada para “aquela hora” e com alguns ritos introduzidos — nem
sempre litúrgicos — em alguma celebração particular. Ninguém pode controlar o
Espírito de Deus que age na liberdade e não com agendas de data e hora
marcadas.
Além do mais, considero útil
servir-se do bom senso, e para isso um bom começo pode estar nas Instruções do
Sacramento da Unção dos Enfermos — Praenotanda 6 — que reconhece a importância
e a necessidade da intercessão pela saúde corporal e de ser atendido “se esta for a vontade Deus”. Percebe-se
que não se trata de uma promessa, mas de uma possibilidade real de quem,
humildemente, se coloca em atitude de aceitar a vontade divina. Este aspecto de
cura na Liturgia e pela Liturgia foi contemplado no Concílio de Florença (1431-1445)
(Cf. Ds 1325) e está presente no Catecismo da Igreja Católica (n. 1520), que
trata deste tema como “dom particular do
Espírito Santo”, entendendo a necessidade da intercessão deste dom presente
nos ritos sacramentais propostos pela Igreja.
Algumas celebrações transmitidas
na mídia exageram em promessas de milagres e curas de todo
tipo. Não tenho o direito de emitir julgamento, mesmo porque todo
julgamento sempre recai em ressaltar o negativo; é preciso reconhecer que
muitas dessas celebrações, sempre com forte acento emocional, tem sido caminho
de conversão pela cura espiritual para muitas pessoas. Não julgo, mas constato
este fato no que diz respeito ao aspecto psicológico da emoção, que é sempre
passageiro e, por isso, passível de equívoco. No que se refere às curas
espirituais, a Direção Espiritual e os místicos da Igreja, insistem na necessidade
de entrar e fazer o caminho do discipulado. A conversão de São Paulo é um bom
exemplo disso.
Na
prática, do ponto de vista celebrativo, estou falando do perigo da
instrumentalização da Liturgia. Esta pode ser instrumentalizada para servir a
interesses políticos e sociais, como tem acontecido, e pode ser
instrumentalizada com promessas terapêuticas e curativas. De um modo ou de
outro, é sempre instrumentalização, o que implica em considerar uso equivocado
da Liturgia.
Despertar a fé
Uma
das finalidades inerentes na celebração da Liturgia é o despertar da fé.
Repito: finalidade inerente, porque toda celebração serve para
despertar e fazer crescer a fé, em primeiro lugar. Despertar, animar e
alimentar a fé. Toda celebração litúrgica é, neste sentido, um momento para
confirmar a fé. E isso vale especialmente quando celebramos com irmãos e irmãs
debilitados fisicamente ou espiritualmente. Não se pode perder este aspecto,
pois, em casos extremos, existe sim o risco de instrumentalizações com fins
beirando a “efeitos mágicos”, o que não tem nada a ver com celebração
litúrgica. Seria muito triste se assim acontecesse ou que se ritos fizessem
supor um conceito próximo a isso.
Um
modelo para compreendermos bem este aspecto encontra-se no episódio dos discípulos de Emaús (Lc
24,13-35). Debilitados espiritualmente em suas esperanças, os discípulos retornam
de onde partiram. A Liturgia da Palavra, realizada com Jesus no caminho, até a
pousada, e a partilha do pão, reascenderam neles a fé, restabeleceu a esperança
no coração e os tornou missionários e anunciadores do encontro com o Senhor. Para
isso acontecer em nossas celebrações, é importante que os responsáveis pela
preparação das celebrações, as equipes de celebrações, saibam conduzir
o coração dos celebrantes ao coração do Mistério da fé.
É a dinâmica mistagógica que, na prática, significa conduzir para dentro do
Mistério da Salvação. Não para dentro do misterioso, mas para dentro da ação
divina onde acontece o Reino de Deus. Neste caso, o sofrimento pode ser
acolhido como parte do caminho da vida pessoal e não usado para desafiar a Deus
com milagres, como tem acontecido com Jesus, narrado em Mt 16,1-4.
Mais
que promover celebrações terapêuticas com promessas de curas é preciso
compreender que toda atividade de serviço divino em favor do povo — como se
entende pela etimologia da palavra “Liturgia”, que é serviço a favor do povo e
serviço do povo dirigido a Deus — realiza-se na liberdade do Espírito e querer
programá-la para finalidades ou interesses humanos, por mais justos e
benevolentes que sejam, é algo que, ao meu ver, não nos compete. Em situações
de crises, físicas ou espirituais, a celebração é fonte para discernir qual a
vontade de Deus em todos os momentos de nossas vidas ou num momento existencial
em particular. Se Deus quiser agraciar-nos com sua bênção curativa, bendito
seja o seu nome pelos séculos dos séculos.
Serginho Valle
Agosto de 2019