26 de out. de 2024

Motivo e motivos para valorizar a dimensão evangelizadora da Liturgia


Vamos partir de um dado verificado e comentado por liturgistas, diretores espirituais, pregadores de retiro e pessoas que atuam no aconselhamento pastoral: a debilidade espiritual da vida cristã de um grande número de cristãos do século XXI. A debilidade espiritual na vida cristã e a ausência de fontes espirituais. Não a ausência de fontes, em sim, mas a não ativação dessas fontes para dessedentar a sede de espiritualidade na vida das pessoas. Uma dessas fontes é a Liturgia (SC 10).

São Paulo VI dizia que “a Liturgia é a primeira e mais importante escola espiritual da vida cristã”. O primeiro documento do Vaticano II — Sacrosanctum Concilium — foi dedicado à Liturgia e, se você atentar para a finalidade primeira da reforma litúrgica, vai perceber que a prioridade não se encontra nas mudanças celebrativas e rituais, mas no favorecimento do crescimento da vida cristã. A primeira linha da SC 1 diz: “O sagrado Concílio, propondo-se fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis...” O fomentar a vida cristã dos fiéis acontece pela espiritualidade.

O risco de espiritualismos e devocionalismos
O fomento da vida cristã acontece pelo crescimento espiritual que, por sua vez, é decorrente da evangelização. Dois elementos que se completam e se distinguem pela cronologia: primeiro vem a evangelização que, à medida que toma conta da vida e da mentalidade da pessoa do evangelizado, vai plantando nele a espiritualidade do discipulado até se tornar uma pessoa evangelizada. Para nós cristãos, vida espiritual é vida evangelizada, vida que bebe o sentido de viver no Evangelho e vive de acordo com a mentalidade do Evangelho. Mais. Vive segundo o Evangelho conduzido pelo Espírito Santo de Deus.

Em termos práticos, como demonstrado no Novo Testamento e, do ponto de vista histórico, até o século VIII, por exemplo, o primeiro momento da vida cristã, depois do kerigma, é o contato com o Evangelho em forma de evangelização. Depois vem a catequese seguida do Batismo. O período posterior ao Batismo, chamado “mistagógico”, tinha (tem) em vista do crescimento da vida espiritual. Ora, todo esse processo desapareceu nos caminhos da história e, até mesmo, assistimos uma inversão no processo: primeiro se batiza, depois se faz catequese e se recebem os demais Sacramentos da Iniciação Cristã, Eucaristia e Confirmação. Tem uma catequese que nem sempre consegue evangelizar, entendendo a evangelização como o acolhimento do projeto de vida a partir da mentalidade do Evangelho. Disso a consequência que vemos em nossos dias de uma vida espiritual debilitada na maior parte dos cristãos.

No âmbito social, a evangelização perdeu espaço e a vida espiritual, em vários aspectos, passou a ser tratada com espiritualismos, dos quais as “orações poderosas” e diversas modalidades de práticas, não devocionais, mas devocionalistas, tornaram-se comuns a ponto de ganhar mais prestígio popular que a própria Liturgia. Espiritualismos e devocionalismos não comprometem; são realizados para “dobrar” a vontade divina em favor próprio diante de alguma necessidade; e, para isso, “orações tão poderosas” diante das quais nem Deus consegue resistir e, magicamente, realiza aquilo que o orante impõe a seu favor. A divulgação de espiritualismos e devocionalismos, muito próximos da dinâmica do que se denomina de “mágica religiosa”, inclui proteções relacionadas ao uso de anéis, pulseiras colares e outros adereços.

A espiritualidade cristã não caminha neste viés e, é por isso que a Liturgia, hoje, no momento da atual história, precisa ser pensada de modo diferente, mais evangelizada e mais evangelizadora, com toda sua pedagogia mistagógica para purificar a vida dos celebrantes conduzindo-as no caminho do Evangelho, na estrada de Jesus (discipulado), naquilo que é o normal da vida cristã. Por isso, pedindo desculpa pela insistência, eu sugiro pensar a Liturgia de modo diferente, mais evangelizada e mais evangelizadora, para que seja capaz de iluminar com a luz do Evangelho a vida pessoal de cada celebrante e, mais que isso, ser a primeira e principal fonte da espiritualidade na vida pessoal de cada celebrante. Celebrações evangelizadas e evangelizadoras são fonte de espiritualidade cristã.

Pedagogia mistagógica
O que tenho proposto até o momento tem como suporte o “subjetivismo espiritual”, que mencionei outro artigo (“A vida pessoal na Liturgia”). O “subjetivismo espiritual” é um fenômeno religioso que começa aparecer em celebrações, desbancando silenciosamente a proposta da partilha fraterna e solidária. Sendo fato subjetivo, o relacionamento aconteceu entre “eu e Deus”, sem a necessidade de intermediações, nem mesmo da Igreja. Exemplo disso é o conceito de “confessar-se diretamente com Deus”. Ora, a celebração litúrgica é um momento comunitário que acolhe a história individual, a história eclesial, a história da comunidade inserida na sociedade civil… A Liturgia é celebrada em forma de assembleia, Sacramento do Corpo Místico de Cristo e, por isso, jamais é um fenômeno subjetivo. Papa Francisco chama atenção e diz que, para que o “veneno do subjetivismo espiritual” não tome conta das celebrações, existe a necessidade da pedagogia mistagógica.

Convido você a lermos juntos o n.19 da “Desiderio Desideravi” de Papa Francisco:

19. Se o gnosticismo nos intoxica com o veneno do subjetivismo, a celebração litúrgica liberta-nos da prisão de uma autorreferencialidade alimentada pela própria razão ou pelo próprio sentir: a ação celebrativa não pertence ao indivíduo mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo. A Liturgia não diz “eu” mas “nós” e qualquer limitação à amplitude deste “nós” é sempre demoníaca. A Liturgia não nos deixa sós na busca individual de um suposto conhecimento do Mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como assembleia, para nos conduzir para dentro do mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos revelam. E fá-lo, em coerência com o agir de Deus, seguindo a via da Encarnação, através da linguagem simbólica do corpo que se prolonga nas coisas, no espaço e no tempo.

 Vamos considerar juntos os três itens que eu destaquei, em negrito, ali no texto.

Veneno do subjetivismo
O veneno do subjetivismo é explicado, no próprio texto, como a prisão da “autorreferencialidade alimentada pela própria razão ou pelo próprio sentir”. A celebração da Liturgia é atividade libertadora desse perigo, diz o Papa, transportando os celebrantes do individualismo do “eu” para a fraternidade do “nós”.

Não pertence ao indivíduo
A segunda frase que destaco diz que “a ação celebrativa não pertence ao indivíduo, mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo.” É uma explicação contra o “veneno do subjetivismo” de propor celebrações litúrgicas voltadas para favorecer interesses pessoais. A celebração litúrgica é eclesial, e isto significa dizer que a celebração litúrgica é do Corpo místico de Cristo, é de toda a Igreja reunida na comunidade. É como Igreja que todos rezamos por todos, que todos intercedemos por todos e juntos glorificamos o único e mesmo Deus e Senhor.

Tomados pela mão
A terceira expressão destaca a atividade da pedagogia mistagógica da Liturgia. Papa Francisco descreve assim: “A Liturgia não nos deixa sós na busca individual de um suposto conhecimento do Mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como assembleia, para nos conduzir para dentro do Mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos revelam.” É a pedagogia litúrgica, caracterizada como pedagogia mistagógica, que conduz os celebrantes ao contato e à participação no Mistério; conduz os celebrantes para dentro do Mistério, para dentro da Salvação. Não faz isso de modo individualizado, mas como Igreja reunida ao redor da Palavra que, por sua vez, não despreza a individualidade, ao contrário, a enriquece com a espiritualidade litúrgica.

Conclusão
O modo para que a Liturgia realize sua atividade na dimensão da pedagogia mistagógica, de conduzir os celebrantes na “estrada de Jesus”, no caminho do discipulado, acontece pelo que se denomina de Pastoral DA Liturgia, a qual se serve da pedagogia mistagógica.

Como tenho proposto em outros textos, existe a Pastoral Litúrgica, que se ocupa da organização da atividade litúrgica da comunidade, dividida em atividades ministeriais, e existe a Pastoral DA Liturgia, que se realiza através da atividade celebrativa com celebrações evangelizadas e evangelizadoras. A Pastoral DA Liturgia propõe celebrações evangelizadas e evangelizadoras para que os celebrantes alimentem suas vidas com a espiritualidade cristã e, desse modo, tenham vida cristã digna de discípulos e discípulas de Jesus Cristo.

Serginho Valle 
Outubro de 2024

Curso de Pastoral DA Liturgia, acesse:

 

19 de out. de 2024

Pensar a Liturgia de Modo Diferente

Publicidades nas redes sociais demonstram que Missas temáticas, como as de cura e libertação, conquistam grande popularidade no meio católico. A sociologia e a psicologia religiosas explicam que sempre existiu uma demanda emocional do povo em busca de alívio e cura por meio de rituais. Isto sempre esteve presente em todas as épocas históricas com ritos religiosos buscando curas e libertações interiores. Embora muitos padres não tenham essa intenção, a Missa acaba sendo vista e usada também como um meio de cura física. Tal finalidade de realizar celebrações, não somente da Missa, com características de instrumentalizações milagreiras não condiz com a Teologia Litúrgica e nem com a sua espiritualidade.

 

A Igreja oferece rituais próprios para interceder pela saúde — como a “Missa pelos Doentes” (Pro infirmis). É uma celebração Eucarística para rezar “pelos doentes”, colocando a vida dos doentes nas mãos de Deus, sem transformar a celebração em um rito voltado exclusivamente a curas e milagres. O mesmo princípio encontra-se no Sacramento da Unção dos Enfermos, com sua proposta celebrativa invocando a cura física do doente, mas sempre em modo tal que a vontade divina prevaleça.

 

Efeitos psicológicos nas celebrações emotivas

A Psicologia da Religião observa que encontros marcados por músicas altas e gestos expressivos, como mãos levantadas, olhos fechados, o bater palmas e movimentos corporais... podem gerar respostas emocionais fortes, como choros e, em casos extremos, até mesmo desmaios. Esses fenômenos, em contextos de grande carga emocional, podem ser confundidos com ações divinas; é um risco que se corre.

 

A Igreja sempre é muito cautelosa e zelosa em proteger a essência da Liturgia, que sempre celebra o Mistério Pascal de Cristo, cuidando para não servir a outros fins, como rituais curativos em estilo de atração religiosa. A celebração litúrgica não se norteia por critérios de espetáculo, mas em obedecer às normas da Igreja, e não àquilo que apenas “agrada ao povo”, aquilo que o “povo gosta”.

 

Desde o início da Igreja, em termos de celebração Eucarística, a Liturgia deu mais atenção à dimensão da pedagogia mistagógica, que a promoção de milagres, embora eles tenham proliferado em forma de bênçãos e Missas Votivas, na Idade Média, quando a mistagogia é esquecida a ponto de desaparecer. Voltou com a reforma litúrgica do Vaticano II sendo proposta como caminho de introdução (iniciação) para participar de modo consciente e ativo do Mistério celebrado.

 

Tal dimensão, repito, deixou de existir na Idade Média e foi retomada com a Reforma Litúrgica, no século XX. A passagem dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-34) ilustra essa pedagogia: antes de partilhar o pão (Eucaristia), Jesus percorre um caminho com eles, explicando as Escrituras para, pedagogicamente, conduzi-los ao Mistério da Ressurreição. Este é um indicativo de como conduzir nossas celebrações com a mesma pedagogia mistagógica de introduzir os celebrantes no Mistério celebrado. Perceba que não existe instrumentalização neste caso. Existe um acompanhamento mistagógico, realizado por Jesus, de introdução no Mistério da Ressurreição, que tem seu momento culminante — a Liturgia é cume e fonte (SC 10) — na “fractio panis” Eucarística (Lc 24, 30). Celebrar não para milagres, mas para marcar a conclusão de uma etapa da caminhada na estrada de Jesus, no discipulado.

 

Na tradição litúrgica, a celebração dos Sacramentos e dos Sacramentais tem, entre outras dimensões, esta dimensão pedagógica de fazer com que os fiéis caminhem com o Senhor, compreendam a vida a partir da Palavra que sempre é anunciada em toda celebração litúrgica para serem configurados a Jesus Cristo como discípulos e discípulas. Como ensina São Paulo VI, a Liturgia é a primeira escola da vida cristã”. Entende-se que a vida cristã é vivida na “estrada de Jesus”, no caminho do discipulado, cuja fonte encontra-se na Liturgia proclamadora e celebrante memorial da Palavra. Estou falando da dimensão evangelizadora da Liturgia.

 

O papel evangelizador da liturgia

Papa Francisco, na “Desiderio desideravi” (n. 37), reforça que a dimensão evangelizadora da celebração litúrgica. A celebração como momento evangelizador, um contato de compromisso para se assumir existencialmente o Evangelho. A celebração litúrgica não prescinde (nem pode prescindir) do emocional. Mas, o emocional somente para emocionar, para causar sensações emocionais fortes, sem evangelização, torna-se incompleta. O encontro com Cristo Ressuscitado, que emocionou os discípulos de Emaús, continua emocionando aqueles celebrantes que fazem experiência do encontro com o Senhor vivo na celebração litúrgica. Quanta emoção e sentimento de alegria ao celebrar a Penitência e se sentir abraçado pelo perdão divino. Quanta emoção de doentes que se sentem fortalecidos pela celebração da Unção dos Enfermos.

 

É a emoção de quem se compromete com o Evangelho à medida que caminha na estrada de Jesus. Para isso, entende-se que a pedagogia mistagógica é essencial para a formação da vida cristã compreendida de modo holístico: emocional, racional, corporal, relacional. O primeiro objetivo da Reforma Litúrgica, proposto pelo Concílio Vaticano II, afirma que a Liturgia, na qualidade de fonte é chamada a fomentar a vida cristã entre dos celebrantes (SC 1). “Fomentar” aqui significa proporcionar meios para o crescimento espiritual da vida cristã em tudo aquilo que respeita à vida; de modo holístico.

 

Para assim acontecer é preciso pensar a Liturgia de modo diferente, sempre mais evangelizada e evangelizadora. A proposta de pensar a Liturgia de forma diferente não tem o intuito de transformar a Liturgia da Palavra em longas pregações, mesmo porque a Liturgia da Palavra não contempla toda a celebração. Mas, é Liturgia da Palavra que dá sentido ao Mistério celebrado em cada Sacramento e, ao mesmo tempo, que se torna luz para se viver de modo fiel a vida cristã em modo pessoal e a vida cristã de toda comunidade. Neste caso, a vida cristã em forma de serviço nas diferentes pastorais e ministérios de uma comunidade paroquial. Eis o contexto para se compreender a pedagogia mistagógica atuando em celebrações evangelizadas e evangelizadoras.

 

Sei que existem muitos materiais de qualidade disponíveis para ajudar nessa prática de tornar as celebrações litúrgicas sempre mais evangelizadas e evangelizadoras servindo-se da pedagogia mistagógica. Permita-me incluir também dois cursos que escrevi e gravei sobre este tema. Um curso introdutório, chamado Pastoral DA Liturgia e um curso mais denso para organizar a PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial. Para conhecer e saber mais sobre os cursos, acesse:

 

Pastoral DA Liturgia — https://lp.liturgia.pro.br/pastoral-da-liturgia

 

PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial — https://lp.liturgia.pro.br/plp1

 

Serginho Valle
Outubro de 2024

  

12 de out. de 2024

A vida pessoal (impessoal) na celebração da Liturgia

Por mais que estejamos envolvidos em redes sociais, com milhares de seguidores, a sensação de ser “impessoal” — não ser visto como pessoa, como indivíduo — é uma realidade experimentamos em várias situações. Imagine-se numa sala de espera de um departamento público ou hospital, esperando ser atendido. Você recebe ou retira uma senha: seu nome é trocado pelo número da senha. Nós nos acostumamos e consideramos isso normal, mesmo sendo explícito que deixo de ser o “Serginho” e passo a ser considerado o próximo número de senha para ser atendido. Pode ser o modo mais prático de organizar uma lista de espera, mas não deixa de ser “impessoal”.

 O dicionário define “impessoal” como algo que não se refere ou não pertence a uma pessoa em particular. Sendo “impessoal”, não existe a particularidade da individualidade com suas características específicas e sua originalidade. O dicionário também esclarece o comportamento relacional com quem é “impessoal”: distanciamento, frieza, indiferença. Este é um risco real que podemos transportar para as celebrações litúrgicas, celebradas e marcadas pela frieza de ser “impessoal”, distante, indiferente, secos, frios...


Diante dessa possibilidade, é fundamental dedicar-se, de modo organizado, a resgatar a importância da vida pessoal, a valorização da pessoa, nas celebrações litúrgicas. Este resgate pode ter mais sucesso havendo zelo pela Pastoral Litúrgica Paroquial — PLP —.

 

O “pessoal” em diferentes celebrações

Existem modos e modos para que a Liturgia não escorregue para o “impessoal”, entendendo-a como fria, distante, indiferente à vida, mas valorize, na sua peculiaridade comunitária, o “pessoal” de cada indivíduo. O modo de favorecer o lado “pessoal” em celebrações que reúnem grande número de celebrantes, como é o caso da celebração Eucarística, coloca mais exigências que a celebração da Liturgia do Sacramento da Penitência, por exemplo onde a vida pessoal é partilhada pessoalmente com o padre, comprometendo a pessoa, individualmente, em sua conversão.

 

A dimensão pessoal na celebração de um Batismo, que tem o lado pessoal da familiaridade, é diferente da dimensão pessoal na celebração da Unção dos Enfermos que, como no caso da celebração da Penitência, é uma celebração que atinge o lado pessoal (individual) do enfermo. Mesmo que o contato pessoal, no Batismo ou na Unção dos Enfermos, seja diferente, a proximidade com o pessoal é mais fácil.

 

O mesmo grau de contato pessoal se verifica, inclusive em forma de compromisso pessoal, em celebrações sacramentais como é o caso da Crisma, do Matrimônio e da Ordem. Em cada uma dessas celebrações, aparece claramente o envolvimento pessoal, seja no contexto simbólico como no envolvimento pessoal enquanto empenho pessoal da pessoa que celebra o Sacramento. Pessoalmente, a pessoa torna-se comprometida em primeira pessoa.

 

O mesmo poderíamos atribuir a sacramentais, como é o caso da celebração de bênçãos de pessoas, ou a celebração de um funeral. Neste caso, o envolvimento pessoal não é com o falecido, evidentemente, mas com as pessoas que vivem e participam do luto com seu sofrimento e esperança. É algo pessoal, que toca diretamente a vida da pessoa.

 

Facilmente percebemos que estamos diante de dois campos: um que coloca os celebrantes em celebrações comunitárias e o outro que valoriza os celebrantes na sua individualidade, na sua “pessoalidade” (identidade pessoal) envolvendo a vida pessoal. As celebrações que tocam a pessoa em sua individualidade, em princípio, não deveriam oferecer dificuldade de comprometimento com a celebração. O desafio encontra-se em celebrações que se caracterizam como comunitárias e, neste caso, estou me referindo às celebrações da Eucaristia. Para tal finalidade, contamos com a necessidade de uma PLP — Pastoral Litúrgica Paroquial — organizada e efetiva.

 

A busca de soluções apelando para o individualismo é complicada porque a assembleia deixa de ser expressão da eclesialidade e se torna um grupo de pessoas individualizadas interagindo consigo mesmas, individualisticamente. O celebrante é direcionado a entrar em si mesmo deixando de ser participante da vida de quem com ele celebra a mesma Eucaristia. Está junto com outros celebrantes, mas individualmente, sem comunhão nem participação na vida de quem com ele está celebrando. Por isso, este caminho não se mostra apropriado.

 

Organizar a PLP especialmente nas Missas Dominicais

O desafio de aproximar cada celebrante da sua vida pessoal sem perder a dimensão comunitária da eclesialidade não é pequeno e nem simples. Um modo de encarar esse desafio encontra-se na organização da PLP — Pastoral Litúrgica Paroquial. O primeiro e principal objetivo para atingir a vida pessoal em celebrações comunitárias, como é o caso da Eucaristia, é propor celebrações evangelizadas e evangelizadoras. Entende-se que o Evangelho, mais que a promoção de momentos emocionados na celebração, é capaz de confrontar diretamente a vida pessoal de cada celebrante. Por isso, a PLP de cada paróquia, muito mais que, apenas, organizar um calendário com escalas de leitores e outros ministérios, tem o desafio de propor celebrações cada vez mais evangelizadas e evangelizadoras.

 

O primeiro trabalho de uma PLP consiste em avaliar o grau de comprometimento que a celebração propõe para a vida dos celebrantes, não em tom de moralismos, mas evangelizadoramente, propondo o estilo de vida do Evangelho. É um trabalho, no qual a PLP é chamada a perceber se nas celebrações da comunidade as pessoas estão presentes de maneira mecânica, sem se envolverem pessoalmente com a proposta evangelizadora de cada celebração. Avaliar se as celebrações da comunidade estão sendo marcadas pela indiferença, mecanizadas na presidência, automatizadas no exercício dos ministérios, desafinadas nas escolhas da canções.

 

A mecanização e a automatização são as primeiras causas de celebrações favorecedoras do contato impessoal, sem o envolvimento da vida, sem serem capazes de atingir a vida do indivíduo, aquilo que forma sua pessoa, sua história pessoal com seus conflitos e sucessos. Ao contrário disso, a proposta é realizar celebrações capazes de tocar o perfil pessoal de cada celebrante para que não sejam meros figurantes, mas se comprometam em pessoa, pessoalmente, com aquilo que é celebrado.

 

A Liturgia, no atual contexto histórico, sente-se vocacionada a ser capaz de tocar a vida pessoal e atingir a experiência pessoal de cada celebrante. Cada celebrante deve ser conduzido pessoalmente a fazer a experiência de uma participação pessoal, capaz de ser tocado em sua existência, capaz de encontrar respostas aos seus questionamentos e buscas existenciais. Disso, a proposta de pensar a Liturgia sempre mais evangelizada e evangelizadora. Quanto mais evangelizada for uma celebração, maiores são as condições de atingir a vida pessoal de cada celebrante de modo comprometido.

 

Diante de tal desafio, me propus a escrever e gravar um curso denominado “Curso de PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial”. No primeiro módulo do meu curso de PLP, chamo atenção para a motivação primeira e principal de quem atua em algum ministério litúrgico, a começar pelo padre: a atitude pastoral de ter e dedicar cuidado à vida pessoal de cada celebrante. Na celebração litúrgica, como nas Missas, não se trata tal cuidado com técnicas psicológicas, mas preparando, organizando e celebrando celebrações evangelizadas e evangelizadoras. Para isso, contamos com a presença ativa do Espírito Santo para conduzir cada celebrante, com sua vida pessoal, na “estrada de Jesus”.

 

Para conhecer detalhes do meu curso da organização da PLP, acesse:

https://lp.liturgia.pro.br/plp1

Serginho Valle

Outubro de 2024

 

6 de out. de 2024

Tornar-se "ouvinte da Palavra"

Ouvia muito de meu professor de Teologia Sistemática, o saudoso e competente Pe. José Knob, SCJ, a definição de teólogo como um “ouvinte da Palavra”. A expressão que assim define o teólogo é de Karl Rahner. Pe. Knob se servia dessa expressão para enfatizar que a atividade teológica é realizada por quem ser faz “ouvinte da Palavra”. Condição indispensável para penetrar no Mistério da santidade divina com temor e admiravelmente contemplativo.

 Lidando com meus estudos de Teologia Litúrgica, penso que o mesmo princípio —"ouvinte da Palavra” — deva ser aplicado ao conceito e à atividade da pedagogia mistagógica porque a condição para se penetrar no Mistério divino é tornando-se um “ouvinte da Palavra”. É um princípio da pedagogia mistagógica para ajudar os celebrantes a pensar com a lógica do pensamento divino.

 Para isso, as celebrações devem ser preparadas com a dinâmica metodológica da Lectio Liturgica, que entra em contato com a Palavra de Deus de modo diferente de uma Lectio Divina, diferente de um texto de exegese e, também, diferente da Teologia Bíblica. Serve-se de cada um desses métodos, mas se encontra com a Palavra de modo litúrgico. A Lectio Liturgica é uma “lectio” (uma lição) que celebra a Palavra e a semeia no terreno do coração dos celebrantes (Nt 13,4-9). É uma atividade mistagógica, que introduz no Mistério que é celebrado iluminado com a luz da Palavra.

 A Palavra de Deus ilumina e orienta a vida de todo homem e mulher; é a luz dos olhos de nossas vidas, canta o salmista (Sl 119,105). Este é um princípio primário e uma realidade para quem se dedica a alguma atividade da PLP — Pastoral Litúrgica Paroquial. É um tema que procuro deixar bem claro no meu curso de PLP. Quem atua em algum ministério da Liturgia torna-se “ouvinte da Palavra” para se colocar em condições de ministerialidade. Neste caso, toda a assembleia, que é formada pelo padre, pelos ministérios e pelo povo, são “ouvintes da Palavra”. Está é a primeira e principal condição para que o processo mistagógico aconteça. Ter uma assembleia “ouvinte da Palavra”.

 O ouvinte da Palavra 

No processo da pedagogia mistagógica, o movimento inicia acontece pela disposição de ouvir, de se tornar um ouvinte com todas as características de um bom ouvinte: silenciamento interior, acolhimento, aceitação, empatia, abertura... para com a Palavra. Na comunicação litúrgica, o celebrante participa como “ouvinte da Palavra” adotando a posição corporal e atenção na Palavra proclamada para ser ouvida.

 Outra atitude é a atenção silenciada ao se ouvir a Palavra de Deus. A dinâmica psicológica distingue entre a atitude de ler e a atitude do ouvir. Quando o leitor entra em contato com a Palavra ele é direcionado à compreensão do texto em modo individual. Por isso, o movimento do leitor é de se concentrar no texto lido. Quando se ouve, o ouvinte entra em contato com quem fala e isso provoca alguma reação pessoal. Na leitura de um texto, estou eu comigo mesmo, na audição, eu me coloco diante do outro. A Liturgia da Palavra consta de uma proclamação e de uma audição assemblear. Não é uma Liturgia realizada com vários leitores espalhados pela assembleia, concentrados em folhetos, livretes ou celulares.

 Um terceiro elemento, sempre no contexto da Lectio Liturgica com ênfase na pedagogia mistagógica, ligado ao ouvir, é a contemplação. Ouvir com atenção a Palavra de Deus — ser um “ouvinte da Palavra” — é assumir atitude de contemplativo diante da Palavra proclamada. A mistagogia inicia e introduz os celebrantes no mistério através da contemplação e a chave que abre o caminho da contemplação é tornando-se “ouvinte da Palavra”, aquele que dedica atenção contemplando, totalmente envolvido pelo silêncio.

 Sobre o tema “silêncio e Liturgia”, sugiro uma catequese litúrgica que publiquei no meu canal de Youtube, na qual descrevo e apresento o silêncio como espaço do Espírito Santo. Por isso, silenciar como “ouvinte da Palavra” é abrir espaço para que o Espírito Santo aja e torne os meus pensamentos semelhantes aos pensamentos de Deus que são diferentes do nossos pensamentos (Is 58,8-10).

 Interrogar e interrogar-se 
Depois da contemplação, o movimento provocado pela escuta e acolhimento da Palavra é a interrogação. É um movimento duplo: o que a Palavra me diz e como a Palavra me atinge. A pedagogia mistagógica, neste caso, tem a função de ajudar os celebrantes a se confrontarem com a Palavra de Deus para que a Palavra aja em suas vidas e no modo de pensar. Na Liturgia nos tornamos “ouvintes da Palavra” permitindo que ela interrogue nosso modo de viver e nosso modo de pensar.

 As interrogações existenciais aparecem constantemente em vários personagens Bíblicas. Profetas se interrogam diante da Palavra e interrogam Deus sobre o significado da Palavra que lhes é dirigida e, mais profundamente, sobre o sentido da Palavra na vida deles. O autor da Carta aos Hebreus diz: “Pois a Palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e as intenções do coração” (Hb 4,12). Por isso, liturgicamente falando, a Palavra é proclamada para ser ouvida e, como “ouvinte da Palavra” permitir que ela penetre até as juntas e medulas; penetre profundamente na vida de cada celebrante interrogando o modo de viver. Um exemplo muito compreensível, deste ponto de vista contemplativo, é Maria, a Mãe de Jesus: acolhe a Palavra de Deus, deixa-se interrogar, interroga e nela acontece a encarnação da Palavra de Deus.

 A Liturgia da Palavra, na celebração litúrgica de todos os Sacramentos e Sacramentais, proclama e celebra a Palavra para que toque e interrogue a vida dos celebrantes a vida dos celebrantes. Um importante papel, como facilmente se deduz, é atribuído ao homiliasta, esperando dele condições para refletir a Palavra de modo existencial para favorecer nos celebrantes o que foi dito no decorrer da reflexão.

Serginho Valle 
Outubro de 2024

 

Para conhecer o curso de PLP, acesse = https://lp.liturgia.pro.br/plp1

Catequese “Silêncio e Liturgia”, acesse = https://youtu.be/bybypTmhsrg

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