Vamos partir de um dado verificado e comentado por liturgistas, diretores espirituais, pregadores de retiro e pessoas que atuam no aconselhamento pastoral: a debilidade espiritual da vida cristã de um grande número de cristãos do século XXI. A debilidade espiritual na vida cristã e a ausência de fontes espirituais. Não a ausência de fontes, em sim, mas a não ativação dessas fontes para dessedentar a sede de espiritualidade na vida das pessoas. Uma dessas fontes é a Liturgia (SC 10).
São Paulo VI dizia que “a Liturgia é a primeira e mais importante escola espiritual da vida cristã”. O primeiro documento do Vaticano II — Sacrosanctum Concilium — foi dedicado à Liturgia e, se você atentar para a finalidade primeira da reforma litúrgica, vai perceber que a prioridade não se encontra nas mudanças celebrativas e rituais, mas no favorecimento do crescimento da vida cristã. A primeira linha da SC 1 diz: “O sagrado Concílio, propondo-se fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis...” O fomentar a vida cristã dos fiéis acontece pela espiritualidade.
O risco de espiritualismos
e devocionalismos
O fomento da vida cristã acontece pelo
crescimento espiritual que, por sua vez, é decorrente da evangelização. Dois
elementos que se completam e se distinguem pela cronologia: primeiro vem a
evangelização que, à medida que toma conta da vida e da mentalidade da pessoa
do evangelizado, vai plantando nele a espiritualidade do discipulado até se
tornar uma pessoa evangelizada. Para nós cristãos, vida espiritual é vida
evangelizada, vida que bebe o sentido de viver no Evangelho e vive de acordo
com a mentalidade do Evangelho. Mais. Vive segundo o Evangelho conduzido pelo
Espírito Santo de Deus.
Em termos práticos, como demonstrado no Novo Testamento e, do ponto de vista histórico, até o século VIII, por exemplo, o primeiro momento da vida cristã, depois do kerigma, é o contato com o Evangelho em forma de evangelização. Depois vem a catequese seguida do Batismo. O período posterior ao Batismo, chamado “mistagógico”, tinha (tem) em vista do crescimento da vida espiritual. Ora, todo esse processo desapareceu nos caminhos da história e, até mesmo, assistimos uma inversão no processo: primeiro se batiza, depois se faz catequese e se recebem os demais Sacramentos da Iniciação Cristã, Eucaristia e Confirmação. Tem uma catequese que nem sempre consegue evangelizar, entendendo a evangelização como o acolhimento do projeto de vida a partir da mentalidade do Evangelho. Disso a consequência que vemos em nossos dias de uma vida espiritual debilitada na maior parte dos cristãos.
No âmbito social, a evangelização perdeu espaço e a vida espiritual, em vários aspectos, passou a ser tratada com espiritualismos, dos quais as “orações poderosas” e diversas modalidades de práticas, não devocionais, mas devocionalistas, tornaram-se comuns a ponto de ganhar mais prestígio popular que a própria Liturgia. Espiritualismos e devocionalismos não comprometem; são realizados para “dobrar” a vontade divina em favor próprio diante de alguma necessidade; e, para isso, “orações tão poderosas” diante das quais nem Deus consegue resistir e, magicamente, realiza aquilo que o orante impõe a seu favor. A divulgação de espiritualismos e devocionalismos, muito próximos da dinâmica do que se denomina de “mágica religiosa”, inclui proteções relacionadas ao uso de anéis, pulseiras colares e outros adereços.
A espiritualidade cristã não caminha neste viés e, é por isso que a Liturgia, hoje, no momento da atual história, precisa ser pensada de modo diferente, mais evangelizada e mais evangelizadora, com toda sua pedagogia mistagógica para purificar a vida dos celebrantes conduzindo-as no caminho do Evangelho, na estrada de Jesus (discipulado), naquilo que é o normal da vida cristã. Por isso, pedindo desculpa pela insistência, eu sugiro pensar a Liturgia de modo diferente, mais evangelizada e mais evangelizadora, para que seja capaz de iluminar com a luz do Evangelho a vida pessoal de cada celebrante e, mais que isso, ser a primeira e principal fonte da espiritualidade na vida pessoal de cada celebrante. Celebrações evangelizadas e evangelizadoras são fonte de espiritualidade cristã.
Pedagogia mistagógica
O que
tenho proposto até o momento tem como suporte o “subjetivismo espiritual”, que
mencionei outro artigo (“A vida pessoal na Liturgia”). O “subjetivismo
espiritual” é um fenômeno religioso que começa aparecer em celebrações,
desbancando silenciosamente a proposta da partilha fraterna e solidária. Sendo
fato subjetivo, o relacionamento aconteceu entre “eu e Deus”, sem a necessidade
de intermediações, nem mesmo da Igreja. Exemplo disso é o conceito de “confessar-se
diretamente com Deus”. Ora, a celebração litúrgica é um momento comunitário que
acolhe a história individual, a história eclesial, a história da comunidade
inserida na sociedade civil… A Liturgia é celebrada em forma de assembleia, Sacramento
do Corpo Místico de Cristo e, por isso, jamais é um fenômeno subjetivo. Papa
Francisco chama atenção e diz que, para que o “veneno do subjetivismo espiritual”
não tome conta das celebrações, existe a necessidade da pedagogia mistagógica.
Convido você a lermos juntos o n.19 da “Desiderio Desideravi” de Papa Francisco:
19. Se o gnosticismo nos intoxica com o veneno do subjetivismo, a celebração
litúrgica liberta-nos da prisão de uma autorreferencialidade alimentada pela
própria razão ou pelo próprio sentir: a ação celebrativa não pertence ao indivíduo mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos
fiéis unidos em Cristo. A Liturgia não diz “eu” mas “nós” e qualquer limitação
à amplitude deste “nós” é sempre demoníaca. A Liturgia não nos deixa sós na
busca individual de um suposto conhecimento do Mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como
assembleia, para nos conduzir para dentro do mistério que a Palavra e os sinais
sacramentais nos revelam. E fá-lo, em coerência com o agir de Deus, seguindo a
via da Encarnação, através da linguagem simbólica do corpo que se prolonga nas
coisas, no espaço e no tempo.
Veneno
do subjetivismo
O veneno
do subjetivismo é explicado, no próprio texto, como a prisão da “autorreferencialidade alimentada pela
própria razão ou pelo próprio sentir”. A celebração da Liturgia é atividade libertadora desse
perigo, diz o Papa, transportando os celebrantes do individualismo do “eu” para
a fraternidade do “nós”.
Não pertence ao indivíduo
A
segunda frase que destaco diz que “a
ação celebrativa não pertence ao indivíduo, mas a Cristo-Igreja, à totalidade
dos fiéis unidos em Cristo.” É uma explicação contra o “veneno do subjetivismo” de propor celebrações
litúrgicas voltadas para favorecer interesses pessoais. A celebração litúrgica
é eclesial, e isto significa dizer que a celebração litúrgica é do Corpo
místico de Cristo, é de toda a Igreja reunida na comunidade. É como Igreja que
todos rezamos por todos, que todos intercedemos por todos e juntos glorificamos
o único e mesmo Deus e Senhor.
Tomados
pela mão
A
terceira expressão destaca a atividade da pedagogia mistagógica da Liturgia.
Papa Francisco descreve assim: “A
Liturgia não nos deixa sós na busca individual de um suposto conhecimento do
Mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como assembleia, para nos
conduzir para dentro do Mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos
revelam.” É a pedagogia
litúrgica, caracterizada como pedagogia mistagógica, que conduz os celebrantes
ao contato e à participação no Mistério; conduz os celebrantes para dentro do
Mistério, para dentro da Salvação. Não faz isso de modo individualizado, mas
como Igreja reunida ao redor da Palavra que, por sua vez, não despreza a
individualidade, ao contrário, a enriquece com a espiritualidade litúrgica.
Conclusão
O modo
para que a Liturgia realize sua atividade na dimensão da pedagogia mistagógica,
de conduzir os celebrantes na “estrada de Jesus”, no caminho do discipulado,
acontece pelo que se denomina de Pastoral DA Liturgia, a qual se serve da
pedagogia mistagógica.
Como tenho proposto em outros textos, existe a Pastoral Litúrgica, que se ocupa da organização da atividade litúrgica da comunidade, dividida em atividades ministeriais, e existe a Pastoral DA Liturgia, que se realiza através da atividade celebrativa com celebrações evangelizadas e evangelizadoras. A Pastoral DA Liturgia propõe celebrações evangelizadas e evangelizadoras para que os celebrantes alimentem suas vidas com a espiritualidade cristã e, desse modo, tenham vida cristã digna de discípulos e discípulas de Jesus Cristo.
Serginho
Valle
Outubro
de 2024