14 de set. de 2024

Verbum Domini e Liturgia (Reflexão dedicada ao Mês da Bíblia de 2024)

Você pode ter estranhado o título: "Verbum Domini e Liturgia". No rito latino, após as leituras, o leitor ou leitora anuncia: "Verbum Domini", traduzido no português como "Palavra do Senhor". Mas, não é sobre essa tradução que falarei agora. Minha reflexão se baseia na Exortação Apostólica Verbum Domini de Bento XVI, que deveria ser leitura obrigatória para quem atua em pastorais e, mais especialmente, para quem exerce o ministério do leitorato.

O que é a Verbum Domini

A Verbum Domini é uma Exortação Apostólica pós-sinodal escrita por Bento XVI, publicada em 30 de setembro de 2010. Trata da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Um dos temas mais importantes da Verbum Domini incentiva os cristãos e cristãs a um contato mais profundo com as Escrituras para alimentar a vida espiritual e deixar o coração ardendo para se tornar testemunha viva da Palavra de Deus.

 Bento XVI divide o documento em três temas principais:

  1. A Palavra de Deus na vida da Igreja – central na atividade eclesial.
  2. A Palavra de Deus na missão da Igreja – diretamente ligada à evangelização.
  3. A Palavra de Deus na cultura – promovendo o diálogo entre fé e razão.

 Esses três temas se encontram na Liturgia, que é a fonte de todas as atividades da Igreja (SC 10). São temas que favorecem a compreensão e a proposta preparar e realizar celebrações evangelizadas e evangelizadoras.

 No princípio de tudo, a Palavra

A Palavra de Deus está no início de todas as atividades da Igreja: das celebrações, das pastorais, de estudos e formações, de obras caritativas; todas as atividades eclesiais são inspiradas na Palavra. Por isso, as atividades eclesiais, inclusive a administração paroquial, não são apenas obras sociais realizadas pela Igreja, mas reações à escuta da Palavra. A Liturgia, celebrando, refletindo e rezando a Palavra é uma fonte privilegiada para essa escuta com o objetivo de se transformar, pela vida dos celebrantes, em reações evangelizadas e evangelizadoras.

Nem todas as paróquias têm consciência disso. A falta de formação e, infelizmente, a falta do cultivo da espiritualidade litúrgica alimentada pela Palavra torna as atividades paroquiais pesadas e sem a leveza de quem trabalha na vinha do Senhor. Isso contrasta com os discípulos de Emaús, cujo coração ardia depois de ouvir a Palavra (Lc 24,13-35). Tanto ardia que reagiram como missionários: voltaram para testemunhar o encontro com Jesus ressuscitado. O contato com a Palavra transforma os discípulos em missionários.

O texto de Emaús é inspirador para quem atua na PLP (Pastoral Litúrgica Paroquial). Assim como Jesus plantou sua Palavra no coração dos discípulos, assim celebrar a Liturgia é semear e plantar a Palavra no coração dos discípulos e discípulas celebrantes. Para isso, além de bons leitores, a necessidade de boas homilias. Homilias que sejam semeaduras e alimento da vida espiritual cristã. Homilias que tornam a Palavra uma luz que guia nossos passos nos caminhos da paz (Sl 119,105), fazendo arder os corações dos celebrantes e fortalecendo a fé.

 Mudança de mentalidade

Compreender a Liturgia como semeadura da Palavra e, mais profundamente, como semeadura das sementes do Evangelho, exige mudança de mentalidade. Pede a conversão no modo de entender a celebração. Muitos ainda veem a Liturgia como um preceito moral religioso a cumprir; obrigação religiosa. Essa visão limita o potencial da celebração de transformar o coração dos celebrantes em discípulos e missionários, em discípulas e missionárias, capazes de reagir evangelizadoramente depois de cada celebração.

 É importante resgatar a proposta da Verbum Domini — favorecer o contato com a Palavra — e torna-la inspiração e motivação de todas as atividades paroquiais. Em tal processo, a Liturgia tem um papel pedagógico fundamental, como explicado no meu curso de Pastoral DA Liturgia (vou deixar o link no final deste artigo).

No texto Bíblico de At 6,7, lemos que a Palavra de Deus se multiplicava e os discípulos cresciam em número. A Palavra é alimento que alimenta e faz crescer a comunidade pela qualidade religiosa da vida dos celebrantes, passando de cristãos e cristãs a discípulos e discípulas do Evangelho. A Eucaristia, mas o mesmo se pode dizer de todos os Sacramentos e Sacramentais, é o exemplo mais visível dessa dinâmica alimentadora, com um local especialmente preparado para realizar sua função alimentadora: a Mesa da Palavra (ambão). O ambão é o espaço onde a Palavra é proclamada, refletida na homilia e rezada na Oração dos Fiéis. Antes de a Igreja celebrar o Mistério no Sacramento, ilumina o Sacramento com o alimento da Palavra para que o “Mysterium fidei” torne-se “ministerium discipulorum” (serviço do testemunho evangelizador).

 Comunidades iluminadas pela Palavra

A Liturgia, sendo fonte de todas as atividades da Igreja (SC 10), é uma das principais fomentadoras e condutoras do contato vivo com a Palavra de Deus, como pede a “Verbum Domini”, porque a Liturgia ilumina a vida da paróquia e a vida dos celebrantes. Para evitar que a Palavra de Deus perca sua centralidade, a Pastoral Litúrgica Paroquial (PLP) tem o dever de, em primeiro lugar ela própria, se iluminar na Palavra para conduzir toda a atividade litúrgica da Paróquia e incentivar celebrações sempre mais evangelizadas e evangelizadoras, quer dizer, celebrações onde é semeada farta e abundantemente a semente da Palavra de Deus.

Serginho Valle 
Setembro 2024

 

Cursos do Serginho Valle

PLP — Pastoral Litúrgica Paroquial 
https://lp.liturgia.pro.br/plp1

 

Pastoral DA Liturgia 
https://lp.liturgia.pro.br/pastoral-da-liturgia

7 de set. de 2024

A homilia

A homilia, etimologicamente, significa "conversa familiar". Hoje, esse conceito pode parecer idealizado, já que o contexto em que a homilia acontece não favorece uma conversa verdadeiramente familiar. Durante a celebração, a comunicação é unidirecional: o padre fala e a assembleia escuta. No entanto, o sentido de "conversa familiar" pode ser mantido na forma de se expressar, com uma mensagem acessível e facilmente acolhedora, como acontece em verdadeira “conversa familiar”.

O que a homilia, não é?

  1. Não é um sermão: A homilia não segue o estilo do sermão, caracterizado pelo tempo longo, carregado de retórica e com um forte acento moralista e moralizante. 
  1. Não é uma pregação extensa: A homilia não tem duração longa, que é característica do estilo das pregações, que podem durar 1 ou mais horas.  
  1. Não é uma aula de exegese: A homilia não consiste em realizar uma explicação detalhada das leituras, do ponto de vista de pesquisas e teses exegéticas, embora, às vezes, seja útil contextualizar um texto bíblico em vista da compreensão.  
  1. Não é uma palestra motivacional: A homilia não tem nada e nem se parece com discursos ou palestras motivacionais, em estilo coach, oferecendo "pílulas" de motivação e incentivos de otimismo.

 Qual o objetivo principal da homilia?

A homilia tem como principal característica a atualização da Palavra de Deus para o contexto histórico atual. A Teologia Litúrgica traduz o movimento e a dinâmica da “atualização” com o termo “memorial”. Neste caso, a homilia é conduzida pela ação do Espírito Santo, atuando por meio do homiliasta para que a Palavra seja vivenciada por cada celebrante e em toda a comunidade. A homilia, em uma primeira compreensão, é um momento de partilha em que o homiliasta transmite (partilha) a sua experiência pessoal e existencial da Palavra de Deus, aplicando-a à realidade dos celebrantes. O homiliasta, portanto, não fala de um tema da Bíblia, mas da sua experiência iluminada pela Bíblia, pela Palavra. É isso que o caracteriza como profeta.

Como a homilia se diferencia de uma aula? 

O que foi proposto faz compreender que a homilia não é uma aula. Enquanto a aula tem um caráter explicativo e intelectual, a homilia se caracteriza como partilha existencial. O homiliasta não está apenas explicando o Evangelho e as leituras, mas sim transmitindo a vivência espiritual e convidando os celebrantes a iluminar suas vidas a partir da Palavra. Cada homilia, portanto, não explica as leituras, mas acende luzes de como viver a Palavra.

A responsabilidade do homiliasta 

O homiliasta, ao proferir a homilia, assume uma grande responsabilidade diante de Deus e da assembleia. Ele se responsabiliza não apenas em conhecer a Palavra de Deus — estudando, preparando a homilia, rezando a Palavra —, mas vivenciado a Palavra que irá refletir com a assembleia. Como Jesus ensina: “a boca fala daquilo de que o coração está cheio” (Mt 12,34). Assim, o homiliasta precisa ter a Palavra no coração, ter o coração cheio da Palavra de Deus, para que a sua fala vá além da retórica e seja autêntica e inspiradora.

Objetivos da homilia 

Dentre vários objetivos da homilia, como consequência desta minha reflexão, destaco apenas dois objetivos da homilia, especialmente da homilia dominical: crescimento espiritual e crescimento na caridade. O processo é de crescimento, não de informações sobre a Bíblia, sobre o Evangelho.  

  • Crescimento espiritual: A homilia tem como um de seus objetivos principais fomentar o crescimento espiritual dos celebrantes. É um modo de a Igreja fomentar a espiritualidade e alimentar espiritualmente os celebrantes através de celebrações evangelizadas e evangelizadoras.  
  • Crescimento na caridade: A partir da vida espiritual, a homilia também deve inspirar os celebrantes a viverem a caridade no seu dia a dia. Tendo proposta vivencial, o resultado da homilia é prático e, no caso, a prática de relacionamentos fraternos e fraternizados na sociedade. 

Sobre a incisão no modo de se relacionar socialmente como cristão, o Documento da CNBB de 2012, nº 88, reforça isso ao dizer que a Palavra de Deus "nos impele para os irmãos", sendo ela a luz que purifica, converte e propõe aos celebrantes estarem a serviço da fraternidade. A homilia é, portanto, um instrumento fortalecedor da vida cristã e das relações fraternas em toda a sociedade.

 Considerações finais

O bom homiliasta conhece a Palavra de Deus tanto pela ciência (estudo) quanto pela experiência de vida. Por isso, deveria assumir o compromisso de nunca deixar de estudar a Palavra (fazer exegese) e, mais ainda, viver a Palavra, de modo que, ao falar, sua homilia seja um reflexo do que vive. Como foi dito, o homiliasta testemunha, com seu estilo de vida o que diz em sua homilia. A verdadeira força da homilia, pensando bem, não está na eloquência, mas na autoridade espiritual do que é partilhado e vivenciado pelo homiliasta.

Serginho Valle 
Setembro 2024

 

 

 

 

 

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