30 de mar. de 2019

O serviço divino na Semana Santa

A auto apresentação de Jesus como aquele que veio para servir e não para ser servido (Mt 20,28) encontra seu momento alto e sua plena realização na sua Páscoa ritual (5f Santa), na sua Páscoa dolorosa (6f Santa) e na sua Páscoa gloriosa (Sábado Santo e Domingo da Páscoa). Uma reflexão sobre o serviço divino, exercido por Jesus Cristo, nas principais celebrações da Semana Santa.



Jesus, o servo obediente de Deus
            O tema do serviço é totalmente pertinente na reflexão da Semana Santa. Está presente na Palavra do Domingo de Ramos, apresentando Jesus como servo obediente que, pela obediência ao projeto do Pai, fez da sua vida terrena um serviço em favor da vida humana. É o próprio Jesus que se apresenta como alguém que veio para servir e não para ser servido (Mt 20,28). Tal disposição de servir está simbolizada na sua entrada em Jerusalém, no Domingo de Ramos, montado num jumentinho, animal servidor, cooperador nos trabalhos diários das pessoas, no tempo de Jesus e, ainda hoje, em muitas partes do mundo.
            A cena de Jesus entrando em Jerusalém montado num animal de serviço simboliza sua atividade servidora e indica o serviço como alternativa ao poder social. Não o poder da dominação, que cria classes entre servidores e servidos, mas o poder pelo serviço, que cria relacionamentos de ajuda mútua pela fraternidade.
            Noutro momento da Semana Santa, o serviço divino realizado por Jesus está simbolizado no rito do lava-pés. Na Quinta-feira Santa, Jesus ritualiza a vida cristã no gesto de lavar os pés de seus discípulos, com a recomendação para fazer o mesmo que fizera (Jo 13,15). Neste mesmo contexto, outro gesto coloca em evidência a amplitude deste serviço como doação da vida: o gesto da “fractio panis”; um gesto doméstico que Jesus transformou em sacramento da doação da sua vida divina para todos os tempos e em todas as partes da terra.
A “fractio panis” favorece a compreensão da Eucaristia em relação ao pão como fruto do trabalho humano e como necessário para alimentar a vida humana. Símbolo do que é essencial para a existência humana. A fração do pão representa a partilha da vida, a partilha do trabalho humano, não com o fim egoísta do enriquecimento, mas como promoção da vida partilhada entre todos. O gesto diário de repartir o pão, fruto do trabalho humano, em nossas mesas, é usado por Jesus como doação da vida divina no altar, local onde se oferece a Deus um sacrifício santo e agradável, mesa onde é repartido o Pão da vida e o Cálice da Salvação.
Aquilo que Jesus realiza ritualmente, na Última Ceia, é vivenciado no seu corpo em sua Paixão e Morte. É a entrega plena da sua vida, presente no seu corpo, como oferenda (sacrifício) ao Pai. Na Paixão de Jesus, o amor divino torna-se serviço na doação da vida divina em vista da plenitude da vida humana. A Palavra da Sexta-feira Santa, no contexto do serviço, ilumina-se no servo sofredor; alguém que se faz servidor da humanidade acolhendo a vontade divina, e por causa disso, passa, faz sua passagem (faz sua Páscoa) pelo sofrimento humano. Gesto compreendido como serviço obediente ao Pai, simbolizado no “servo sofredor” de Isaias (Is 52,13—53,12).
A obediência é um aspecto natural de quem se faz servo. Todo servo fiel é servo obediente, alguém que acolhe a vontade do seu Senhor. Assim viveu Jesus. E assim podemos mensurar a grandeza e a profundidade da obediência de Jesus ao projeto do Pai. Tamanha foi sua obediência, tamanha sua fidelidade que aceitou passar (fazer sua Páscoa) pela morte de Cruz, considerada morte ignominiosa.

A reação divina
            Todo este conteúdo, teologicamente compreensível, causa dificuldades do ponto de vista humano. O conhecido questionamento — por que Deus, que é bondoso e misericordioso, permitiu que seu Filho morresse? — enfraquece-se na Teologia do Servo Sofredor; na Teologia do Serviço. Os servos de Deus, na Bíblia (e fora da Bíblia), sempre se confrontaram com o sofrimento humano e, muitos deles, com a morte, com o martírio. A causa está em Deus ou na dificuldade humana de acolher o projeto divino? Ou de se incomodar com o projeto de divino, a ponto de causar sofrimento aos servos de Deus?
            Outro questionamento: a reação divina. Como Deus reage diante da morte do seu Filho ao expressar seu sentimento de abandonado pelo próprio Pai (Mt 27,46)? A resposta está na Vigília Pascal e no Domingo da Páscoa: a reação divina é a Ressurreição; a destruição da morte.
A Páscoa de Jesus é a passagem pela morte; passagem como indicativo de não permanência. Deus não deixou Jesus na morte; ele desce e passa pela "mansão dos mortos", mas lá não permanece; passa pela mansão dos mortos e lá derrota a força da morte com a sua Ressurreição. O início da Vigília Pascal ritualiza esta passagem da escuridão da noite para a iluminação da luz da Ressurreição simbolizada no fogo novo. A Páscoa de Jesus é a luz divina para o mundo.
Serginho Valle
Março de 2019


23 de mar. de 2019

Lembrando duas fontes da Liturgia

De tempos em tempos, como que folheando um álbum de fotografias, é interessante e importante relembrar algumas fontes da Liturgia, como por exemplo, o fato que nossa Liturgia ter sido criada pelos Apóstolos e pela Igreja primitiva, a partir das instruções do Senhor Jesus.
            Nesta lembrança, não se pode esquecer que tanto Jesus como os Apóstolos, vinham de um povo que sabia rezar, que dedicava momentos do dia a oração ritual e pessoal. Lembramos que nossa Liturgia nasceu e cresceu num contexto orante; no contexto de uma comunidade orante. A Liturgia da Igreja nasceu bebendo na fonte da oração e isto determina uma das mais importantes características da celebração litúrgica: ser momento de oração comunitária eclesial. Trata-se de reiterar aquele predomínio orante da Liturgia, no sentido que somos uma Igreja que se reúne em Liturgia para rezar.
            Uma segunda recordação lembra a língua usada na Liturgia. A primeira língua usada na Liturgia cristã foi o aramaico, depois o hebraico e, logo em seguida se adotou o grego. Jesus e os Apóstolos falavam aramaico e, logicamente, os Apóstolos adotaram o aramaico em suas celebrações litúrgicas e em seus momentos de orações. Nem passava pela cabeça deles que pudesse se impor uma língua oficial para celebrar e louvor a Deus. A adoção do hebraico e do grego seguiu o mesmo critério: celebrar e rezar com a língua que era falada naquela sociedade, naquela cultura onde a Liturgia era celebrada e rezada. A língua que cria relacionamentos sociais é a mesma língua para se entrar em contato com Deus.
Com o crescimento do cristianismo em Roma e, porque os cristãos romanos não entendiam grego, passou-se para o latim. Sempre com o mesmo critério: facilitar a compreensão dos celebrantes para celebrar de modo compreensível. A passagem do grego para o Latim, dizem as fontes históricas, aconteceu com o Papa Damaso.
Adotando o critério da compreensibilidade celebrativa pela língua, nada mais coerente que cada cultura e cada país celebre e reze a Liturgia em sua própria língua. Assim, todas os povos e todas as línguas da terra louvam e intercedem a Deus que compreende todas as línguas da terra. Houve uma certa demora para se compreender isso na Igreja. Depois de vários séculos celebrando a Liturgia em latim, somente em 1963, com o Concílio Vaticano II, a Liturgia passou a ser celebrada na língua de cada nacionalidade, embora ainda conserve o latim em suas celebrações e em seus documentos rituais.
Serginho Valle
Março de 2019


16 de mar. de 2019

O poder do serviço celebrado na Liturgia

Quem lida com PL conhece a etimologia da palavra “Liturgia”: serviço; serviço prestado ao povo. Liturgo é alguém que se dedica a servir o povo, diz o primeiro volume da coleção Anàmnesis. A prioridade do serviço litúrgico, sendo redundante nos significados, pertence a Deus. É Deus que, na Liturgia e pela Liturgia, dedica-se a servir seu povo. Jesus é o “diácono” divino, o servidor de Deus e dos homens. É a Liturgia como “Opus Dei”, o serviço de Deus. São noções que nos situam na proposta serviçal contida na Liturgia.
A resposta humana ao serviço divino acontece em duas atividades. Primeiro pelo serviço laudativo e glorificador que a Igreja celebrante eleva a Deus; é o “sacrificium laudis” (sacrifício, no sentido de “oferta”; o louvor é um sacrifício, é um dom oferecido a Deus). O segundo momento deste serviço acontece no cotidiano da vida de cada celebrante que transforma sua vida em serviço fraterno. É o “sacrificium vitae”, a oferta da vida que acontece concretamente pelo serviço. A origem deste segundo elemento encontra-se na Instituição da Eucaristia, no gesto do lava-pés: “eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo” (Jo 13,15).
Sobre este segundo elemento, uma anotação, em passant, que serve como exemplo. Ouve-se muito, nas Missas, o convite para oferecer a vida no momento das apresentações das oferendas. Está certo, mas a concretização deste ofertório só acontece na atividade prática de quem se coloca a serviço. Não se trata, portanto, de um rito emocional, que se conclui com um sentimento de gratidão, na celebração. Este rito de oferecer a vida só se completa em que viver servindo, a exemplo de Jesus que veio para servir e não para ser servido (Mt 20,28). Nenhuma celebração litúrgica está completa somente no rito celebrativo porque toda celebração conduz para a vida e a vida leva à celebração.

Serviço como alternativa do poder
Outro exemplo referente ao segundo elemento, considerando uma questão prática do envio celebrativo, especialmente na Eucaristia: a Liturgia sempre envia seus celebrantes a viver em contexto de serviço fraterno. É uma proposta que tem embutida uma atitude transformadora da ordem social, que irá se refletir nos relacionamentos sociais.
A sociedade, como sabemos, é regida por vários poderes, como o poder político, o poder financeiro, o poder da mídia... A Liturgia, em suas celebrações, propõe o “serviço” como alternativa ao poder que rege a vida social. Todos os poderes do mundo fundamentam-se na competição e na lei que os fortes vencem e dominam. Aquele ensinamento de Jesus “entre vós não seja assim...” é continuamente repetido em todas as celebrações litúrgicas: “quem dentre vós quiser ser o primeiro, seja seu servidor” (cf. Mt 20,25-28). Ou seja, a Liturgia propõe um poder alternativo, não fundamentado no exercício do domínio, mas em se colocar diante do outro disposto a servir fraternalmente. Este um o poder transformador dos relacionamentos sociais. É o segredo da transformação social.
Entende-se, neste contexto, que a Liturgia não comporta espaço para comícios políticos, embora possa propor critérios para escolha de lideranças sociais, iluminando-se no conceito evangélico do serviço. Um desses critérios, critério primário, por ser o mais importante, é o serviço à vida. Em toda celebração litúrgica a vida sempre está presente, seja na sua Eucologia, seja em ritos, seja na simbologia sacramental... Vida plena, vida em abundância, no dizer de Jesus (Jo 10,10). Ora, quem participa desta vida abundante na Liturgia torna-se divinizado, comprometido em partilhar esta mesma vida, no cotidiano da sua existência, pelo serviço fraterno. A Liturgia é a escola do serviço fraterno que sempre compromete os celebrantes com a promoção da vida plena. Claro que isso só é possível se a Liturgia for completa, quer dizer, celebração e atitude existencial.
Disto, a minha repetida proposta que o envio celebrativo, particularmente o envio Eucarístico, deveria ser: “vai e faze tudo o mesmo” (Lc 10,37). É o envio ao serviço fraterno, iluminado na misericórdia, presente na parábola do Bom Samaritano. Fazer o mesmo que Jesus e fazer como Jesus, para que a Liturgia seja completa: seja celebração e atitude de serviço fraterno.
Serginho Valle

Março 2019

9 de mar. de 2019

O culto cristão

O culto cristão, que a Igreja rende ao Pai, acontece por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo. Pela Liturgia, o celebrante participa e dá continuidade ao culto filial que Jesus Cristo rende ao Pai. Desse modo, nas ações litúrgicas, o celebrante (todos os celebrantes que participam de uma celebração litúrgica) não se apresentam sozinhos diante de Deus, mas sempre acompanhados de Jesus, que torna divino (diviniza) o culto humano, tornando-o santo e agradável diante de Deus.

Liturgia: culto de celebração orante
            É Jesus, nosso Sumo e eterno Sacerdote, que oferece nossas súplicas e nossos louvores ao Pai. É o Espírito Santo, condutor de todas as celebrações litúrgicas, que diviniza (santifica) o culto litúrgico que a Igreja oferece a Deus. Entende-se, portanto, que toda celebração litúrgica autêntica realiza-se em contexto oracional, considerando as três características da oração cristã: o silêncio para se entrar em diálogo íntimo com Deus; a simplicidade para se apresentar humildemente diante de Deus; e, principalmente, a fé como expressão viva e concreta da confiança de que tudo que pedirmos ao Pai, por Cristo, em união com o Espírito Santo, ele nos concederá (Jo 14,13). Entende-se assim que a Liturgia, entre outras características, é essencialmente momento orante diante de Deus conduzido pelo Espírito Santo.
            Jesus fez de sua vida uma oração constante e nunca interrompida com Deus, a quem chama de Abba (Pai). Agora, a oração filial de Jesus continua na sua Igreja — seu Corpo Místico (1Cor 12,27) — por nós e em nós, diz Santo Agostinho, pela e na Liturgia. Outro aspecto que confirma a Liturgia como ação orante, pela qual a Igreja, Corpo Místico de Cristo, reza ao Pai com uma prece constante e nunca interrompida, oferecida por Jesus ao Pai, nosso sumo e eterno sacerdote.
Todos os celebrantes, fundamentados na Teologia do Sacerdócio Comum dos Fiéis, têm o direito de participar ativamente na oração comunitária da Igreja, suas celebrações. Isto favorece a compreensão que a Liturgia não é presbiteral (no sentido que o padre seja seu único protagonista), mas é atividade espiritual (ação do Espírito Santo) e orante de todo o Corpo de Cristo. É pela Liturgia que a Igreja se manifesta como comunidade orante diante do mundo e invocadora incansável da presença divina na terra, como ensinado pelo próprio Jesus (Mt 18,20).

Liturgia: culto normatizado pela Igreja
Um último aspecto do culto orante, é que a Liturgia é celebrada por toda a Igreja e como Igreja. Quer dizer, a Liturgia pertence à Igreja, enquanto Corpo Místico de Cristo que oferece culto de louvor e de súplica ao Pai, na Liturgia, e enquanto responsável pela sua organização normativa. A Liturgia é um culto organizado e normatizado pela Igreja e não por vontades ou gostos pessoais ou por espiritualidades ou carismas congregacionais, por exemplo. A organização normativa da Liturgia pela Igreja é de antiquíssima tradição, fundamentada na Tradição Apostólica, confirmada pela Constituição Litúrgica SC 22, onde se prescreve que nem mesmo o padre tem competência e direito de acrescentar, excluir ou mudar a celebração da Igreja.
Serginho Valle
Março de 2019





← Postagens mais recentes Postagens mais antigas → Página inicial