20 de jul. de 2024

Liturgia e o testemunho cristão no meio da sociedade

A Liturgia é a fonte de todas as atividades da Igreja (SC 10). Isso inclui considerar a Liturgia como fonte do testemunho cristão na sociedade. Um testemunho que nasce de quem se dispõe a caminhar pelo caminho do discipulado e se deixa modelar pelo Evangelho caminhando juntamente com o Mestre. Não somente o caminhante faz o caminho, mas o caminho, ao ser caminhado, também modela o caminhante.

No meio deste caminho encontra-se a "pausa restauradora da Liturgia", como rezamos num dos orate fratres da Missa. Pausa restauradora para ouvir o Mestre que faz arder nosso coração proclamando sua Palavra e repartindo conosco o pão, como ouvimos no início da segunda parte das Orações Eucarísticas para as diversas circunstâncias: "como outrora aos discípulos de Emaús, ele nos revela as Escrituras e parte o pão para nós."

Um tempo diferente 
Mesmo havendo ainda a necessidade de compreender a Liturgia a partir de orientações práticas do tipo: como fazer o comentário na Missa, a arte de celebrar a Liturgia, como cantar na Missa, como marcar o Missal com as fitinhas... o momento agora é outro: é tornar as celebrações cada vez mais evangelizadas e evangelizadoras para fomentar a vida cristã dos celebrantes (SC 1). 

Diante de sociedades adormecidas e divididas por vários tipos de polarizações, que dificultam e, até mesmo, impedem a convivência fraterna na comunidade, a Liturgia precisa tornar-se a fonte da esperança e a voz profética promotora da fraternidade. A compreensão da celebração como "pausa restauradora", especialmente as Missas dominicais, fortalece a caminhada existencial dos celebrantes semeando em seus corações sementes do Evangelho e fortalecendo-os com a oração e espiritualidade. 

Testemunho cristão da fraternidade 
Do ponto de vista social, local onde acontece o testemunho cristão da fraternidade, não existe, no meio social e político, um inimigo mais pérfido e destruidor que a ideologia que defende atitudes de violência como garantia da ordem pública e da convivência social. Aquilo que para muitos parece impossível, a semeadura da paz e a promoção da amizade social, é cultivada com a espiritualidade litúrgica capaz de criar a mentalidade da convivência fraterna. Para isso acontecer, não é preciso (e nem prudente) transformar celebrações em comícios políticos, basta, Domingo depois de Domingo, celebrar Liturgias evangelizadas e evangelizadoras.

Diante de situações conflitantes da sociedade, diante de propostas de sentido de vida com dinâmicas extravagantes, a Igreja tem na Liturgia uma das principais fontes do sentido da vida pessoal e comunitária proposta no Evangelho. Ali, não apenas se ouve e prega o Evangelho, mas se celebra o Evangelho e, naturalmente, se evangeliza. Isso significa que a Igreja conduz os celebrantes a se comprometerem com a proposta de vida do Evangelho. Mais que, apenas, envolver o celebrante com uma mensagem do Evangelho, a Liturgia compromete cada um dos seus celebrantes a se tornarem testemunhas do Evangelho. 

Ora, isso só é possível com celebrações evangelizadas e evangelizadoras que não se limitam à finalidade religiosa de cumprir preceitos, mas são capazes de comprometer politicamente os celebrantes, entendendo a política no contexto da Doutrina Social da Igreja: a política como atividade caritativa. Diante da mentalidade da maior parte dos políticos, que consideram a política como atividade beligerante, de disputas partidárias, a proposta do Evangelho apresenta a política como um serviço prestado para o bem da vida do povo. Essa é uma mentalidade que celebrações evangelizadas conseguem incutir, pouco a pouco, nos celebrantes. A Igreja nunca defende uma bandeira partidária, mas sempre está ao lado do que é bom para o povo, como diz Bento XVI, na Caritas in Veritate (2009): "toda a Igreja, em todo seu agir, celebra e age na caridade, dirigida a promover o bem integral do homem" (CV 11). 

Sair da pastoral de rotina 
As exigências e as mudanças que acontecem na sociedade colocam a necessidade de deixar a mesmice de pastorais de rotina e transitar para pastorais criativas, que possam ajudar e iluminar a vida humana com a luz e com a proposta do Evangelho. Isso não significa inventar a roda e nem pretender aumentar as pastorais, mas fazer criativamente cada vez melhor. Criatividade que nasce especialmente da oração e da meditação da Palavra de Deus. 

 Outra fonte, juntamente com a oração e meditação para transitar de uma pastoral de rotina para a criatividade pastoral, encontra-se na Liturgia. Não a Liturgia propondo métodos pastorais, mas a Liturgia capazes de iluminar a realidade social com o Evangelho realizando celebrações cuidadosamente preparadas de modo evangelizado e evangelizador. O testemunho cristão na sociedade, através de atividades pastorais, — sempre iluminadas pelo Evangelho — nasce de celebrações evangelizadas e evangelizadoras. 

 Para que o testemunho cristão seja transformador no meio da sociedade, existe a necessidade da conversão pastoral, que consiste em passar de uma pastoral de manutenção e de rotina para uma pastoral de missão. Uma das primeiras e importantes fontes da pastoral, enquanto atividade transformadora social iluminada pelo Evangelho, volto a repetir, é a Liturgia. Cada celebração tem a condição de, pouco a pouco, modelar os celebrantes na vida cristã proclamando e celebrando o Evangelho. Celebrações que fazem o coração dos celebrantes arder para serem evangelizadores, anunciadores do Evangelho com palavras e com atitudes. 

Concluindo 
A Liturgia, por lidar com o sagrado, sempre conduz os celebrantes à santidade; e o caminho cristão da santidade se realiza pela oração e pela caridade. A Pastoral DA Liturgia santifica os celebrantes em contínuo diálogo com a realidade social da paróquia. A Pastoral DA Liturgia não é uma atividade pastoral preocupada em levar gente para dentro da Igreja; antes disso, sua preocupação maior é enviar para fora da Igreja para que os celebrantes levem a vida celebrada e evangelizada para o meio da cidade como testemunhas autênticas do Evangelho. 

Serginho Valle 
Julho de 2024 

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13 de jul. de 2024

A celebração como fonte e cume da missão evangelizadora

O conhecido arcebispo americano Fulton Sheen (1895 – 1979), que tive a alegria de ler no tempo do noviciado, dizia: “A primeira palavra de Jesus foi vinde, e a última foi ide. Ninguém pode ir sem antes ter sido chamado.” Este chamado, que pode acontecer de muitas formas e em qualquer lugar, é essencial para que a vida cristã caminhe na estrada de Jesus, no caminho do discipulado. A Liturgia desempenha papel importantíssimo no discernimento do chamado, atuando como fonte e como o ápice de todas as atividades da Igreja (SC 10). Se é de “todas as atividades da Igreja”, entende-se que a evangelização faz parte e, mais que isso, parte essencial para a missão da Igreja.

 Embora a liturgia não seja o único meio pelo qual o chamado se manifesta, ela é um espaço nutricional em termos de evangelização. Cada celebração litúrgica alimenta os celebrantes com a Palavra e os fortalece para se tornarem mais evangelizados e, consequentemente, mais preparados para testemunhar o Evangelho. Disto se deduz a essencialidade de que as celebrações sejam tanto evangelizadas quanto evangelizadoras.

 Papa Bento XVI, em discurso aos participantes da assembleia plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, em 8 de março de 2008, destacou como o secularismo tenta retirar Deus do espaço social e, às vezes, até mesmo, tenta tirar Deus da própria Igreja. Esse fenômeno, dentro da Igreja, resulta em propostas celebrativas carentes de espiritualidade, que se assemelham a produtos religiosos consumíveis. É o que se vê em Missas marcadas pelo genitivo: Missa de Bênção, Missa de Cura, Missa disso ou daquilo... Toda Missa é bênção, é curativa, é libertadora... toda Missa é evangelizadora.

 Encontro com Jesus Cristo
Em um dado momento do Evangelho, os discípulos se aproximam de Jesus e dizem: “Todos te procuram” (Mc 1,37). É uma realidade que persiste em nossos tempos: uma multidão de pessoas continua procurando por Jesus, e cabe a nós apresentá-lo. Existem muitos modos de fazê-lo, como atividades pastorais, estudos bíblicos, propondo caminhos de espiritualidade, propondo e sugerindo práticas caridosas e atividade pastorais... Dentre todos esses modos, vale destacar a Pastoral DA Liturgia, como proponho em meu curso, do mesmo nome, no qual se considera a atividade evangelizadora da Liturgia em todas as celebrações litúrgicas, mas com especial atenção para as Missas Dominicais.

 Papa Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, enfatiza a necessidade contínua de a Igreja ser evangelizada. Novamente, gostaria de lembrar que uma das principais fontes de evangelização é a Liturgia, que cumpre este papel evangelizador celebrando, adorando e rezando. Iluminados pelo aprofundamento teológico e pastoral, entende-se que a evangelização não se trata apenas da comunicação de um conceito ou da apresentação de um livro, o Evangelho; evangelizar consiste em conduzir alguém e toda a comunidade ao encontro com Jesus Cristo. Na Liturgia, considerando a Pastoral DA Liturgia, isso ocorre servindo-se da pedagogia mistagógica que, nos meus cursos — Pastoral DA Liturgia e PLP (Pastoral Litúrgica Paroquial) — é apresentada com a dinâmica da semeadura: semeia sementes do Evangelho, cultiva, poda e colheita com atividades pastorais, ministeriais e carismáticas. É uma atividade simples, esta de propor celebrações evangelizadas e evangelizadoras? Não! Uma das causas é o analfabetismo religioso.

Analfabetismo religioso
Infelizmente, muitos batizados e batizadas vivem um analfabetismo religioso e, uma das consequências, é uma quase aproximação da religião com a magia. Muitos cristãos e cristãs, por exemplo, buscam proteção em “orações poderosas”, outros fundamentam sua fé unicamente em aparições e tem aqueles que vivem de um canto ao outro buscando milagres com a necessidade de visualizar feitos e fatos extraordinários. A Liturgia, servindo-se da pedagogia mistagógica, sempre propõe celebrações evangelizadas e evangelizadoras, educando a prática religiosa cristã de modo simples em vista do discipulado e purificando a religião de finalidades que não são próprias do Evangelho.

Sabemos que muitas pessoas reencontram o caminho religioso pela emoção, e isso é uma porta que jamais pode ser fechada; o emocionar-se diante da maravilha divina é inevitável. O encontro com o divino é, frequentemente, provocado pela emoção, e isso é prazeroso em termos de felicidade. Os salmos bíblicos, por exemplo, refletem a força emocional nas súplicas, agradecimentos e queixas. No entanto, é necessário avançar além da emoção em direção ao discipulado no cotidiano, nem sempre marcado por emoções. Para isso, a necessidade e, mais que necessário, a importância de não se pautar somente em celebrações emocionadas, mas celebrações evangelizadas e evangelizadoras.

 Lembro aqui a citação de Papa Francisco na Desidereio Desideravi:  “uma celebração que não evangeliza não é autêntica, tal como não o é um anúncio que não leve ao encontro com o Ressuscitado na celebração: ambos, por fim, sem o testemunho da caridade são como o bronze que soa e como o címbalo que retine (1Cor 13, 1)(DD 37). Celebrações litúrgicas que não parem na emoção, mas conduzam ao testemunho da caridade que, como dizia acima, se manifestam em pastorais, ministérios, carismas.

 Tudo certo que haja emoção nas celebrações litúrgicas. Penso que seja inevitável, como é o caso de um Matrimônio, de um Batizado, de celebrações exequiais..., mas este não é um fim celebrativo. Em situações de normalidade, penso nas Missas Dominicais, a Liturgia não pode ter um fim unicamente emotivo, realizada com gestos e frases típicas de um coach que anima um auditório... na medida certa, isso é saudável. Mas, pode tornar-se um problema se atividade litúrgica da PLP está finalizada a emocionar; isso só servirá para aumentar o analfabetismo religioso em forma de sino que badala: muito barulho e nada de atividade. O propósito da Pastoral DA Liturgia é semear sementes do Evangelho no terreno existencial de cada celebrante.

A Igreja é missão 

Outro elemento importantíssimo na relação entre Liturgia e evangelização é considerar a missão da Igreja. Para que a Igreja existe? Para que Jesus instituiu a Igreja? São João Paulo II, na Teologia da Redemptoris Missio, ensina que a Igreja não tem apenas uma missão evangelizadora, ela é missão. A Igreja é missão em sua identidade. Quer dizer, não existe Igreja sem missão. Neste sentido, a Igreja a Igreja existe se estiver em perene atividade evangelizadora. Onde a dinâmica evangelizadora é alimentada? Na Liturgia!  Como isso é alimentado na vida dos cristãos e cristãs? Com o alimento da Palavra e do Sacramento celebrados na Liturgia. Não somente, porque a Igreja não é somente Liturgia, diz a SC 9, mas permita-me ressaltar este aspecto no contexto da Pastoral DA Liturgia.

 Do ponto de vista da Pastoral DA Liturgia isso significa que cada celebração deve levar cada celebrante a questionar sua participação na atividade missionária e evangelizadora da Igreja. Não apenas emocionar os celebrantes com o Evangelho, embora a emoção seja necessária, mas celebrar de tal modo que a celebração desinstale os celebrantes de suas comodidades para assumir, em pessoa, o compromisso evangelizador.

 A Liturgia desempenha um papel importantíssimo nesse contexto nos dias atuais. É com celebrações evangelizadas e evangelizadoras, o que significa celebrações que adotam a pedagogia mistagógica, que os celebrantes são comprometidos e envolvidos profundamente no anúncio do Evangelho, como ocorreu com os discípulos de Emaús. Quer dizer, os celebrantes, em cada celebração evangelizada e evangelizadora, são constituídos como missionários e missionárias para testemunhar a ressurreição de Jesus.

 Alegria e evangelização 
A alegria é um componente indispensável da evangelização. Lembro de uma frase das minhas leituras do tempo de estudante de Filosofia, de Pierre Teilhard de Chardin, grande pensador jesuíta, que dizia: “a alegria é o sinal mais infalível da presença de Deus.” Quem vive com Deus e caminha com Jesus é uma pessoa feliz. O Evangelho é fonte de alegria e evangelizar com alegria é algo natural e fundamental. Esta alegria deve também estar presente e ser bebida em nossas celebrações litúrgicas. Isto acontece com celebrações bem preparadas e liturgicamente celebradas. O como fazer isso, pode ser encontrado no meu curso de Pastoral DA Liturgia.

 Como tenho proposto em outras publicações, a alegria na Liturgia não se traduz em adotar linguagens que não sejam apropriadas para a celebração. Do ponto de vista psicológico, a alegria pode se manifestar de diversas formas, inclusive chorar de alegria. Durante as celebrações, a alegria se expressa através da paz interior, uma paz própria de quem está na presença de Deus. É com essa alegria que, no envio de cada celebração, o celebrante é enviado para viver o que celebrou pela vivência alegremente autêntica do Evangelho.

 Voltando à frase inspiradora na abertura do artigo — de Dom Fulton Sheen: “A primeira palavra de Jesus foi vinde, e a última foi ide. Ninguém pode ir sem antes ter sido chamado” — entendo que a Liturgia é exerce a atividade de chamar e de enviar. E, para isso, servem celebrações evangelizadas e evangelizadoras.

Serginho Valle 
Julho de 2024

 

PS — Para saber mais sobre os meus cursos acesse:

Pastoral DA Liturgia — https://lp.liturgia.pro.br/pastoral-da-liturgia

PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial — https://lp.liturgia.pro.br/plp1

 

6 de jul. de 2024

Ecologia e Liturgia

O tema da ecologia tem sido abordado sob diferentes perspectivas em nosso momento histórico. Todos nós, de algum modo, somos afetados pelas tragédias que ocorrem no planeta. Em junho de 2024, vivenciamos de perto as enchentes que devastaram cidades no Rio Grande do Sul, reconhecendo, entre as causas, o descuido e o desgaste da natureza promovidos pelo ser humano.

Igreja e Ecologia
A Igreja Católica não se exime do debate sobre ecologia e reconhece sua significativa responsabilidade diante da crise ecológica atual. Em nossas celebrações, professamos que Deus é o Criador de todas as coisas, e ao dizer “todas as coisas”, nosso pensamento imediatamente se volta para toda a natureza e, mais amplamente, para o universo.

 Em 2015, o Papa Francisco publicou a Encíclica "Laudato Si", onde denomina a Terra como a "casa comum" da humanidade. Desde o papado de Bento XVI, a Igreja tem demonstrado preocupação com a ecologia. Bento XVI foi inclusive denominado pela mídia de "papa verde" devido à sua preocupação com a situação ecológica do planeta. A ênfase no tema ecológico continua com o Papa Francisco, que incentiva católicos e todos os seres humanos a desenvolverem uma consciência de preservação ambiental e cuidado com a criação divina oferecida gratuitamente a nós para vivermos.

Cultura ecológica
Dentro dessa proposta da Igreja, de cuidado para com a ecologia, cuidado com a criação, cabe perguntar: existe alguma relação entre ecologia e Liturgia? A consideração de alguns temas teológicos pode nos ajudar a compreender essa ligação a partir do conceito de cultura ecológica. Não é meu propósito debater tais temas neste espaço, mas poderá servir de sugestão para possíveis trabalhos de teses ou de ensaios.

 A crise ecológica, segundo a Igreja, não é um problema meramente tecnológico, mas conta com forte abordagem antropológica. Está enraizada na própria natureza humana, pois todos fazemos parte da criação e, do ponto de vista da Antropologia cristã, somos seus custódios, como lemos no Livro do Gênesis. Deus criou a terra e a entregou ao homem como sua casa, como local onde vive sua vida: “Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento” (Gn 1,29). A longa e bela Liturgia da Palavra na Vigília Pascal começa precisamente com a proclamação do dom da criação ao homem e à mulher. A vida humana depende do cuidado, cultivo e respeito pela criação que recebemos de Deus.

 O Papa Bento XVI introduziu o conceito de "ecologia humana" como modo de chamar atenção que o cuidado da criação está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento humano, conforme afirmado na encíclica "Caritas in Veritate" de 2009. Bento XVI indica que a degradação da natureza está relacionada ao modo de vida; se este não respeita a natureza, coloca em risco todo o sistema ecológico. O termo “ecologia humana”, citado em várias momentos da “Caritas in Veritate” é outro elemento da Antropologia Cristã chamando atenção para a responsabilidade humana para com o tema ecológico.

 Outro elemento, também este no contexto da Antropologia Cristã, mas desta vez na ordem moral e ética, diz que o descuido e a degradação ambiental, considerados crimes por afetarem a criação divina e prejudicarem a vida de milhões de pessoas, é tratado como pecado. No documento final do Sínodo sobre a Amazônia (2019), esse comportamento foi denominado "pecado ecológico". Do ponto de vista da espiritualidade cristã, a vocação humana não é a de predador, mas de cultivador e conservador da natureza. A Teologia da Criação fundamenta essa perspectiva, fornecendo elementos espirituais que motivam e iluminam a fé, destacando a dignidade humana e, acima de tudo, a vida humana, como central para promover a cultura ecológica em nossas celebrações litúrgicas. Não se pode celebrar as maravilhas divinas na criação e, ao mesmo tempo, agir irresponsavelmente em relação à natureza.

 Liturgia das Horas
A ligação mais evidente entre Liturgia e ecologia está na Liturgia das Horas, que se organiza conforme o tempo natural do amanhecer ao anoitecer. Em certo sentido, a Liturgia das Horas empresta seus louvores à natureza para que louve Deus de modo ecológico. Por isso, a Liturgia das Horas pode ser vista como uma celebração ecológica, promotora da cultura ecológica, pois, "desde o nascer ao pôr do sol", canta louvores ao Deus criador e fonte de toda a vida. É a Liturgia convidando toda a natureza, obra maravilhosa das mãos divinas, para louvar e adorar a Deus criador.  

 A Liturgia das Horas, desde o invitatório do primeiro ofício do dia, celebra o dom da criação: “tem nas mãos as profundezas dos abismos e as alturas das montanhas lhe pertencem, o mar é dele, pois foi ele quem o fez e a terra firme suas mãos a modelaram” (Sl 94). É assim que a Igreja inicia cada dia: recordando que toda a criação repousa nas mãos de Deus. É a visão ecológica da Liturgia: toda a criação é obra das mãos divinas e está nas mãos divinas. Desse modo, o celebrante, diariamente, professa fé no Deus criador. Compreende-se que, se a criação é obra divina, como não ser cuidadoso?

 Assim, considerando apenas o exemplo celebrativo da Liturgia das Horas, a Liturgia tem condições de promover uma pedagogia que incentiva a contemplação da obra da criação desde os primeiros momentos do dia, reconhecendo a luz do sol como presente divino e a lua como luzeiro que ilumina a noite (Sl 74,16). Imediatamente, surge a pergunta: “quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: ‘‘Que é o homem – digo-me então –, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos ocupeis com eles?” (Sl 8,4-5). A Liturgia das Horas pedagogicamente coloca seu celebrante diante da criação e, vendo-se pequeno, percebe-se ainda mais responsável para preservar o que de Deus recebeu. Isso aparece também no cântico de Daniel, cantado nas Laudes Dominicais, Solenidades e Festas Litúrgicas, convidando os celebrantes a louvar o Criador através de suas obras.

Conclusão
A Liturgia das Horas pode servir de motivação para celebrações em forma de Liturgia da Palavra, pastoralmente significativas na catequese, convidando os celebrantes a contemplar a criação como um dom divino e evitar o “pecado ecológico” que afeta toda a vida humana e, principalmente, a vida dos mais pobres. Celebrações contemplativas da natureza ajudam a compreender que respeitar a criação é um ato de louvor e reverência a Deus. É também um modo de tomar consciência do papel de custódio da criação que compete ao homem e à mulher.

Serginho Valle 
Julho 2024

 

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