6 de jul. de 2024

Ecologia e Liturgia

O tema da ecologia tem sido abordado sob diferentes perspectivas em nosso momento histórico. Todos nós, de algum modo, somos afetados pelas tragédias que ocorrem no planeta. Em junho de 2024, vivenciamos de perto as enchentes que devastaram cidades no Rio Grande do Sul, reconhecendo, entre as causas, o descuido e o desgaste da natureza promovidos pelo ser humano.

Igreja e Ecologia
A Igreja Católica não se exime do debate sobre ecologia e reconhece sua significativa responsabilidade diante da crise ecológica atual. Em nossas celebrações, professamos que Deus é o Criador de todas as coisas, e ao dizer “todas as coisas”, nosso pensamento imediatamente se volta para toda a natureza e, mais amplamente, para o universo.

 Em 2015, o Papa Francisco publicou a Encíclica "Laudato Si", onde denomina a Terra como a "casa comum" da humanidade. Desde o papado de Bento XVI, a Igreja tem demonstrado preocupação com a ecologia. Bento XVI foi inclusive denominado pela mídia de "papa verde" devido à sua preocupação com a situação ecológica do planeta. A ênfase no tema ecológico continua com o Papa Francisco, que incentiva católicos e todos os seres humanos a desenvolverem uma consciência de preservação ambiental e cuidado com a criação divina oferecida gratuitamente a nós para vivermos.

Cultura ecológica
Dentro dessa proposta da Igreja, de cuidado para com a ecologia, cuidado com a criação, cabe perguntar: existe alguma relação entre ecologia e Liturgia? A consideração de alguns temas teológicos pode nos ajudar a compreender essa ligação a partir do conceito de cultura ecológica. Não é meu propósito debater tais temas neste espaço, mas poderá servir de sugestão para possíveis trabalhos de teses ou de ensaios.

 A crise ecológica, segundo a Igreja, não é um problema meramente tecnológico, mas conta com forte abordagem antropológica. Está enraizada na própria natureza humana, pois todos fazemos parte da criação e, do ponto de vista da Antropologia cristã, somos seus custódios, como lemos no Livro do Gênesis. Deus criou a terra e a entregou ao homem como sua casa, como local onde vive sua vida: “Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento” (Gn 1,29). A longa e bela Liturgia da Palavra na Vigília Pascal começa precisamente com a proclamação do dom da criação ao homem e à mulher. A vida humana depende do cuidado, cultivo e respeito pela criação que recebemos de Deus.

 O Papa Bento XVI introduziu o conceito de "ecologia humana" como modo de chamar atenção que o cuidado da criação está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento humano, conforme afirmado na encíclica "Caritas in Veritate" de 2009. Bento XVI indica que a degradação da natureza está relacionada ao modo de vida; se este não respeita a natureza, coloca em risco todo o sistema ecológico. O termo “ecologia humana”, citado em várias momentos da “Caritas in Veritate” é outro elemento da Antropologia Cristã chamando atenção para a responsabilidade humana para com o tema ecológico.

 Outro elemento, também este no contexto da Antropologia Cristã, mas desta vez na ordem moral e ética, diz que o descuido e a degradação ambiental, considerados crimes por afetarem a criação divina e prejudicarem a vida de milhões de pessoas, é tratado como pecado. No documento final do Sínodo sobre a Amazônia (2019), esse comportamento foi denominado "pecado ecológico". Do ponto de vista da espiritualidade cristã, a vocação humana não é a de predador, mas de cultivador e conservador da natureza. A Teologia da Criação fundamenta essa perspectiva, fornecendo elementos espirituais que motivam e iluminam a fé, destacando a dignidade humana e, acima de tudo, a vida humana, como central para promover a cultura ecológica em nossas celebrações litúrgicas. Não se pode celebrar as maravilhas divinas na criação e, ao mesmo tempo, agir irresponsavelmente em relação à natureza.

 Liturgia das Horas
A ligação mais evidente entre Liturgia e ecologia está na Liturgia das Horas, que se organiza conforme o tempo natural do amanhecer ao anoitecer. Em certo sentido, a Liturgia das Horas empresta seus louvores à natureza para que louve Deus de modo ecológico. Por isso, a Liturgia das Horas pode ser vista como uma celebração ecológica, promotora da cultura ecológica, pois, "desde o nascer ao pôr do sol", canta louvores ao Deus criador e fonte de toda a vida. É a Liturgia convidando toda a natureza, obra maravilhosa das mãos divinas, para louvar e adorar a Deus criador.  

 A Liturgia das Horas, desde o invitatório do primeiro ofício do dia, celebra o dom da criação: “tem nas mãos as profundezas dos abismos e as alturas das montanhas lhe pertencem, o mar é dele, pois foi ele quem o fez e a terra firme suas mãos a modelaram” (Sl 94). É assim que a Igreja inicia cada dia: recordando que toda a criação repousa nas mãos de Deus. É a visão ecológica da Liturgia: toda a criação é obra das mãos divinas e está nas mãos divinas. Desse modo, o celebrante, diariamente, professa fé no Deus criador. Compreende-se que, se a criação é obra divina, como não ser cuidadoso?

 Assim, considerando apenas o exemplo celebrativo da Liturgia das Horas, a Liturgia tem condições de promover uma pedagogia que incentiva a contemplação da obra da criação desde os primeiros momentos do dia, reconhecendo a luz do sol como presente divino e a lua como luzeiro que ilumina a noite (Sl 74,16). Imediatamente, surge a pergunta: “quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: ‘‘Que é o homem – digo-me então –, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos ocupeis com eles?” (Sl 8,4-5). A Liturgia das Horas pedagogicamente coloca seu celebrante diante da criação e, vendo-se pequeno, percebe-se ainda mais responsável para preservar o que de Deus recebeu. Isso aparece também no cântico de Daniel, cantado nas Laudes Dominicais, Solenidades e Festas Litúrgicas, convidando os celebrantes a louvar o Criador através de suas obras.

Conclusão
A Liturgia das Horas pode servir de motivação para celebrações em forma de Liturgia da Palavra, pastoralmente significativas na catequese, convidando os celebrantes a contemplar a criação como um dom divino e evitar o “pecado ecológico” que afeta toda a vida humana e, principalmente, a vida dos mais pobres. Celebrações contemplativas da natureza ajudam a compreender que respeitar a criação é um ato de louvor e reverência a Deus. É também um modo de tomar consciência do papel de custódio da criação que compete ao homem e à mulher.

Serginho Valle 
Julho 2024

 

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