Nosso ponto de partida é a passagem do Apocalipse que diz: "quem é morno, eu vomito" (Ap 3,16). São João se refere aos cristãos e cristãs que, após terem contato com o Evangelho, não o assumem como estilo de vida. Essa postura provoca repulsa no “estômago divino” e leva a serem rejeitados. É uma expressão forte, sem dúvida, mas extremamente pertinente em todos os tempos. Não há espaço para a mornidão na vida cristã: ou se assume plenamente o Evangelho, ou se está fora do “coração” de Deus.
Aqui, o termo “estômago” carrega um simbolismo especial, remetendo ao lugar onde os alimentos são processados e se tornam fonte de energia para a vida. Assim também é o Evangelho: um alimento espiritual que precisa ser processado na vida espiritual de cada pessoa. Esse é um processo radical, porque, para Deus, não existe o meio-termo: ou somos d’Ele, ou não somos.
Assumir o Evangelho como alimento que gera saúde espiritual na vida cristã acontece em etapas. É um processo contínuo, não um evento único ou resultado de uma única experiência. Jesus nos ensina que é uma caminhada: começamos com um encontro transformador com Ele e seguimos adiante, até chegarmos à casa do Pai, onde existe um lugar preparado para aqueles que caminharam ao seu lado e se alimentaram do Evangelho (cf. Jo 14,2-4).
Esse processo envolve o anúncio inicial (querigma), a catequese e a mistagogia. Nesta reflexão, destaco especialmente a pedagogia mistagógica presente na Liturgia, nas celebrações dos Sacramentos e Sacramentais.
Fonte espiritual
e espiritualidade
A vida cristã bebe de muitas fontes espirituais,
como a meditação da Palavra de Deus, a oração, a leitura espiritual e a direção
espiritual. Porém, a Liturgia é a fonte e o cume de toda a vida
espiritual (cf. SC 10). No
contexto atual, para muitos cristãos e cristãs, a Liturgia é a única fonte
concreta de espiritualidade. Isso exige que a Pastoral Litúrgica Paroquial
(PLP) tome consciência de seu papel em ajudar os celebrantes a “renascer do
alto”.
A celebração litúrgica é um momento privilegiado de encontro com Cristo, vivido em fraternidade, na assembleia celebrativa. É ali que pedimos: “accendat ardor cordis” — “fazei arder nossos corações” —, como aconteceu com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,32). Esse ardor não é apenas emocional, mas transforma o Evangelho em um estilo de vida, uma espiritualidade que molda o cotidiano.
Quando a celebração litúrgica reflete o caminho existencial dos celebrantes, o Evangelho torna-se realidade concreta, conduzindo-os a uma vida nova. Assim como os discípulos de Emaús voltaram correndo para anunciar a Ressurreição, também nós somos chamados a viver uma espiritualidade litúrgica que nos impulsiona a transformar a sociedade à luz do Evangelho.
Papa Francisco constantemente nos exorta à renovação da Igreja, colocando ênfase no caminho espiritual. Embora as estruturas pastorais sejam importantes, sua eficácia depende do suporte espiritual, alimentado pela Palavra de Deus e pela Liturgia.
Essa renovação exige celebrações evangelizadas e evangelizadoras, que envolvam os celebrantes no mistério do Evangelho. A Liturgia é o espaço onde o Evangelho não apenas é proclamado, mas celebrado, para que desça do ambão ao coração e transforme vidas. É nesse sentido que a Liturgia se torna fonte de espiritualidade e discipulado.
Pastoral
Litúrgica Paroquial (PLP)
Para que tudo isso aconteça, é necessária uma
organização cuidadosa da Pastoral Litúrgica Paroquial. Seu objetivo é anunciar
o Evangelho e formar discípulos e discípulas por meio da pedagogia mistagógica.
Celebrar bem é colocar as pessoas no caminho de Jesus, tornando-as testemunhas
do Evangelho na sociedade.
O Papa Francisco nos alerta contra a “desertificação espiritual” dos tempos atuais. Vivemos em uma cultura onde o poder financeiro é visto como a espiritualidade dominante. Contra essa realidade, a Liturgia nos convida a renascer do alto, pelo Espírito Santo, para viver segundo a lógica do Evangelho: simplicidade, gratuidade e caridade fraterna.
O Poço de
Sicar
A cena do encontro de Jesus com a samaritana no
poço de Sicar (cf. Jo 4,1-41) nos ajuda a compreender a dinâmica da Liturgia como fonte de
espiritualidade. A samaritana representa toda a humanidade, em busca da “água
viva” que dá sentido à vida. Na Liturgia, encontramos Jesus e somos saciados
pelo Espírito Santo. É ali que bebemos da espiritualidade do Evangelho e somos
transformados em discípulos e discípulas, capazes de testemunhar a caridade no
mundo.
A Liturgia é, portanto, a fonte onde a humanidade encontra a água viva de Deus, renasce do alto e se torna capaz de pensar como Deus e agir com a lógica do Evangelho. É essa espiritualidade que nos permite enfrentar os desafios de hoje e ser luz no mundo.
Serginho Valle
Novembro 2024
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