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A Quaresma e seus encontros: encontro com o Mestre

O itinerário quaresmal do Ano B propõe o quarto encontro: o encontro com Jesus Cristo, o Mestre. Em outras reflexões, considerei o encontro consigo mesmo (1DQ-B), o encontro com Deus (2DQ-B) e o encontro com o culto (3DQ-B); culto como modo de entrar em contato com Deus, em privado e comunitariamente, na oração pessoal e nas celebrações.
            O encontro com Jesus, no 4º Domingo da Quaresma B, convida cada pessoa a se colocar no lugar de Nicodemos, assumindo o papel do discípulo: ir ao encontro do Mestre, colocar-se diante dele e silenciar para ouvir seu ensinamento. O encontro com Jesus, portanto, inicia-se com a decisão de ir procurar o Mestre, escutar o Mestre e silenciar diante do Mestre. Em tal contexto, minha proposta não considera a exegese do texto, mas o movimento existencial de quem se dispõe entrar no caminho da conversão indo ao encontro de Jesus para torná-lo Mestre de sua vida.

Ir ao encontro do Mestre
            O encontro com Jesus, na qualidade de Mestre, é uma decisão estritamente pessoal. Claro que este encontro tem seus precedentes, como o conhecimento do Mestre, a admiração, o vínculo de simpatia com o modo de viver e de pensar do Mestre, ou, pode ser, até mesmo, a curiosidade para conhecê-lo melhor. Todas são motivações humanas que favorecem o ir ao encontro do Mestre.
            “À noite, Nicodemos foi se encontrar com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos que viestes como Mestre da parte de Deus, pois ninguém é capaz de fazer os sinais que fazes se Deus não está com ele” (Jo 3,2). Este versículo não é contemplado na pericope evangélica da Liturgia do 3DQ-B, mas faz parte do contexto do Evangelho proclamado no 3DQ-B, por isso é importante tê-lo presente para não se perder de vista a motivação de Nicodemos que, em última instância, deveria ser a finalidade de todo celebrante disposto a converter-se ao Evangelho: ir ao encontro de Jesus para encontrar-se com o Mestre que veio da parte de Deus. Esta é uma motivação importantíssima no processo da conversão quaresmal: encontrar-se com Jesus, para que ele seja Mestre da vida pessoal. Jesus mesmo confirma o grau deste encontro quando diz: “não chameis a ninguém de Mestre, porque um só é vosso Mestre” (Mt 23,8).
            Existe uma condição para se procurar Jesus como Mestre: a fé. Não a fé como crença, desta que consiste em acreditar (se convencer) na divindade de Jesus, mas a fé como experiência de quem vê os sinais feitos por Jesus, quem ouve seus ensinamentos e de quem, como Nicodemos, deduz que somente alguém que vem de Deus pode realizar as obras que Jesus realiza.

Colocar-se diante de Jesus para ouvir
            Nicodemos vai ao encontro de Jesus com o propósito de ouvi-lo, de escutar seu ensinamento. Esta é a atitude típica do discípulo e da discípula: ouvir o Mestre. Para isso, o discípulo e discípula partem do pressuposto que o Mestre entende a vida, que o Mestre tem uma visão particular e peculiar da vida, uma visão existencial, com a qual vale a pena empenhar a própria existência.
            No processo do discipulado, o colocar-se diante do Mestre exige a atitude de ouvir, e essa atitude nem sempre é confortável, especialmente em nossos dias. O ouvir, neste caso, indica colocar toda a atenção naquilo que o Mestre diz. Não somente no sentido de prestar atenção no ensinamento para compreendê-lo, mas no sentido de assimilar o ensinamento do Mestre para desapegar-se do modo pessoal de pensar em vista de assimilar existencialmente o ensinamento do Mestre.
Os primeiros místicos do cristianismo denominam tal dinâmica com o termo “ruminatio”. A ruminação é um processo digestivo de muitos animais para transformar o alimento em energia vital. Este é o significado do colocar-se diante do Mestre para ouvir, escutar o que diz e deixar que o ensinamento do Mestre rumine no coração e se transforme em energia espiritual; em modo de viver. Transforme-se em comportamento.

Silenciar diante do Mestre
            Por fim, um terceiro aspecto, decorrente do anterior: a necessidade do silêncio para ouvir. É o silenciar diante de Jesus para ser capaz de conversar com Jesus sobre questões existenciais. À medida que Jesus vai propondo seu ensinamento, Nicodemos ouve, silencia e interroga; coloca questionamentos a partir de sua experiência existencial.
            O encontro com Jesus é um encontro de diálogo, mas o protagonismo do diálogo é dado ao Mestre, dada a Jesus, a ele que é a prova concreta do amor de Deus pelo mundo. Quando se dá o protagonismo ao Mestre, quando se silencia para ouvir o Mestre Jesus, então se entra na dinâmica de vida eterna, de vida plena. Vida eterna, vida plena porque é vida de Deus vivendo na vida humana.

Concluindo
            Nos encontros quaresmais, o encontro com Jesus Mestre é o convite para converter-se de todas as propostas de vida feitas pelos mais diferentes “mestres” que nos rodeiam. Uma proposta de conversão para encontrar-se com o único Mestre que propõe a vida plena, que conduz à vida eterna.
Serginho Valle
Março 2018


Quaresma e seus encontros – encontro com o culto

Considerando a Quaresma como promotora de encontros, no contexto do “Ano B”, vou considerar três aspectos da conversão quaresmal a partir do encontro com o culto. Em outras reflexões, considerei o encontro consigo mesmo (1DQ-B), o encontro com Deus (2DQ-B) e, agora, o encontro com o culto, na fonte inspiradora no 3º Domingo da Quaresma – B.
            Por culto, nesta reflexão, entendo um modo de entrar em contato com Deus, seja em privado, feito pessoalmente a Deus, ou comunitariamente, também denominado culto público, realizado nas celebrações.
            A Bíblia oferece muitas indicações quanto ao modo de cultuar Deus, mas duas delas servirão para compreender o significado profundo e sincero do culto, de onde se origina o apelo à conversão. Uma delas está no início da profecia de Isaias (Is 1,11-18). Pela boca do profeta, Deus se mostra enojado dos sacrifícios oferecidos por serem vazios, sem o suporte da vida. A profecia de Isaias retrata o culto mentiroso, feito de ritos e de exterioridades; um culto que não vem do coração e nem chega ao coração de quem o oferece a Deus. Este é um culto detestável a Deus.
            Outro texto que inspira minha reflexão encontra-se na carta aos Hebreus 10,5-14. É um texto básico, digamos assim, para compreender a Teologia do culto cristão. O autor da carta aos Hebreus anuncia que os cultos antigos, com sacrifícios (oferendas) de animais não mais existem; o culto verdadeiro acontece em Jesus Cristo, no sacrifício da vida de Jesus Cristo, para ser mais preciso. É a partir desta Teologia que se entende a espiritualidade do culto, que se avalia a sinceridade ou a superficialidade de um culto.

Adoração cultual e estilo de vida
            A principal característica do culto é a adoração a Deus. Cultuamos Deus para adorá-lo. No culto de adoração a Deus, o silêncio é uma necessidade (Hab 2,20), as nossas orações de súplicas (muitas vezes inocentes), nossas preces de agradecimento e de louvor são culto de adoração a Deus. Nossas celebrações têm a finalidade principal de adorar a Deus; disto o questionamento daquelas celebrações preocupadas em agradar os celebrantes pelo entretenimento emocional ou simplesmente visual.
            É neste contexto que o 3DQ-B convida a converter-se a um culto verdadeiro, que seja de adoração a Deus, excluindo toda e qualquer forma de adoração a ídolos, porque não existe outro deus além de Deus. É com este convite que a 1ª leitura do 3DA-B (Ex 20,1-17) conduz a comunidade e cada celebrante a avaliar o seu modo de cultuar a Deus a partir dos 10 Mandamentos. No contexto do 3DQ-B, entende-se que o culto verdadeiro só existe no coração de quem ilumina seu modo de viver nos Mandamentos divinos. Não existe culto de adoração a Deus sem o aval do comportamento pessoal e relacional com o outro, como referido na profecia de Isaías (Is 1,11-18).
O apelo à conversão quaresmal, portanto, para se adorar sinceramente a Deus, corresponde a viver de acordo com os Mandamentos divinos.

Culto e testemunho de vida
            Na Carta aos Hebreus, citada acima (Hb 10,5-14), o convite para cultuar a Deus é refletido numa expressão belíssima: “ecce venio!”. “Eis que venho para fazer a tua vontade”. Antes disso, o autor da Carta aos Hebreus coloca na boca de Jesus um reconhecimento: “não quisestes nem sacrifícios e nem oblações, então eu disse: “ecce venio” para fazer a tua vontade”. É claramente compreensível a mudança de uma forma de culto para outra forma de cultuar a Deus: não mais com sacrifícios da vida de animais, mas com o sacrifício da própria vida, fazendo a vontade de Deus no cotidiano da vida.
            É bom esclarecer que a palavra sacrifício, no contexto Litúrgico, não tem a conotação do senso comum, relacionada a sofrimento, a dolorismos ou renúncias de esforço extremo. O termo etimológico — sacrum+facere — significa “tornar sagrado”; tornar a vida um sacrifício é santificar a vida fazendo a vontade de Deus. Sacrifício é sinônimo de oferenda, como se reza na Missa, após a preparação das ofertas: “orai, irmãos e irmãs, para que o nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso”. O sacrifício da assembléia celebrante é o pão o vinho, sacramento da vida humana, que se transformará, pela ação do Espírito Santo, em sacramento da vida divina. Por isso, transformar a vida em sacrifício não significa optar por um modo de viver com dores e sofrimentos, mas em fazer da vida uma oferta agradável a Deus para tornar-se santo como Deus é Santo (1Pd 1,16).
            Um modo de transformar a vida em sacrifício, em oferenda a Deus, diz a 2ª leitura (1Cor 1,22-25) do 3DQ-B é testemunhar o Evangelho com o modo de viver. O verdadeiro culto, na reflexão de Paulo, não se preocupa com milagres (como se vê em algumas modalidades de Missa, que celebram para atrair milagres de curas), nem em propor uma ideologia social (como se vê em algumas modalidades de Missas com cores partidárias). O convite de Paulo propõe a fidelidade ao testemunho pelo discipulado de Jesus Cristo crucificado, prestando pelo modo de viver culto a Deus.

Destruir o culto interesseiro
            Por fim, a terceira proposta de encontrar-se com o modo de como cultuamos a Deus tem a ver com cultos interesseiros, como proposto no Evangelho do 3DQ-B (Jo 2,13-25). Jesus pede para destruir “este” templo, porque ele irá construir um novo Templo. O pronome “este” faz referência a um estilo de templo construído para o lucro e não para prestar culto de adoração a Deus.
            É um tema muito pertinente e agudo, que nem sempre gostamos de tocar, mas que é essencial no apelo da conversão quaresmal. Para que o culto seja verdadeiro, Jesus expulsa os mercadores do templo, aquelas pessoas que transformaram o templo num “covil de ladrões”. Gente que se serve da pobreza humana, seja material como a causada pelo desespero, para lucrar e “vender graças”, contradizendo o contexto gratuito próprio da graça. Aqui temos o pecado do culto das igrejas comerciais, que descaradamente vendem milagres e prometem riquezas em nome de Deus. Infelizmente, é preciso reconhecer que também entre nós existem aqueles que desvirtuam a finalidade do templo e o transformam numa supermercado de milagres e serviços religiosos. O apelo é forte em vista da conversão a um culto sincero, feito na gratuidade.
O templo é um espaço gratuito, um espaço da gratuidade divina, onde os celebrantes celebram seu culto de adoração a Deus na gratuidade divina, convertendo suas vidas à gratuidade. Nisto consiste a conversão ao amor, a recusa ao egoísmo e à avareza, de querer levar vantagem em tudo, até mesmo naquilo que pertence a Deus. Em termos radicais, o culto é gratuito, não local para pedir dinheiro nem que for para o dízimo. Todo interesse de lucro, no uso do templo, o transforma num covil de ladrões, como diz Jesus.
A conversão ao culto é extremamente necessária para se experimentar a gratuidade divina e se converter a viver relacionando-se gratuitamente com todos.
Serginho Valle

Março de 2018

Quaresma e seus encontros – Encontro com Deus

No primeiro momento, a Quaresma conduz o homem e a mulher para o deserto, local que silencia todo tipo de relacionamento, ideal para encontrar-se consigo mesmo. Nos encontros da Quaresma, o primeiro deles propõe um encontro pessoal consigo mesmo, na quietude do deserto. Um encontro para escolher o essencial e não ceder à nenhum tipo de tentação, que sempre conduz ao abandono de Deus.
            No segundo momento da Quaresma, é o próprio Jesus que toma seus discípulos para conduzi-los a outro local silencioso: a montanha. É o cenário e o contexto da celebração do 2º Domingo da Quaresma. A montanha, na simbologia Bíblica, indica a necessidade do empenho na subida, indica a proximidade com Deus, que vive no alto e indica a importância de separar-se do mundo para encontrar-se com Deus. Não é um local definitivo, como demonstra a cena da Transfiguração, no Monte Tabor (Mc 9,2-10). Jesus não acolhe a ideia de Pedro para construir tendas, mas reconduz seus discípulos para o meio do povo. Mesmo assim, é uma subida necessária e importantíssima no discipulado cristão.
            Nos encontros que a Quaresma promove, trata-se, portanto, de um segundo encontro. Depois de encontrar-se consigo mesmo, no silêncio do deserto, a necessidade de encontrar-se com Deus, no silêncio da montanha. Mensagem clara que Deus se manifesta no silêncio e que o silêncio é uma morada divina. Entrar no silêncio para fazer experiência de Deus. Este é o convite do segundo encontro proposto pela caminhada da Quaresma. Um convite imprescindível para o crescimento na espiritualidade do discipulado. Uma experiência, igualmente imprescindível, no processo contínuo e sempre necessário da conversão.

Contemplar a glória divina no Senhor
            Na experiência de encontrar-se com Deus, o discípulo e discípula de Jesus são chamados a conhecer a identidade de Jesus. Uma experiência excitante, contemplada na Transfiguração do Senhor (2DQ). Não estou falando de visão, mas de contemplação. Não apenas ver, mas entrar no Mistério de Jesus pela contemplação, uma das maiores e mais extraordinária experiência da espiritualidade cristã: a experiência da contemplação.
            Grande parte das pregações quaresmais contenta-se em destacar a beleza de Jesus na Transfiguração e o pedido de Jesus para descer a montanha, passando a impressão que o mais importante é não ficar longe do povo. É um equívoco cometido por quem se deixa contaminar pelo ativismo. Não existe atividade frutuosa junto ao povo, seja em pastorais ou em outras atividades, sem o silêncio da contemplação, sem a força da oração silenciosa. Não existe testemunho cristão qualificado de leigos e leigas, de bispos e padres, de religiosos e religiosas sem o encontro silencioso com o Senhor, na e pela contemplação. No contexto dos encontros quaresmais, a contemplação ocupa o centro de quem se decide a entrar no caminho da conversão.
            A espiritualidade litúrgica ensina que a Transfiguração, celebrada no início da Quaresma, é um modo de encorajar os discípulos e discípulas de Jesus a não perderem a fé, no momento da desfiguração de Jesus, pendente na Cruz. Transfiguração e desfiguração são irmãs na vida cristã. Irmãs no Cristo transfigurado, contemplado no silêncio da montanha, e no Cristo desfigurado, contemplado na sua Cruz e nas cruzes de tantos irmãos e irmãs com quem nos deparamos, quando descemos a montanha silenciosa da contemplação e ingressamos na planície barulhenta e tumultuada da vida diária.
            O segundo encontro da Quaresma convida a aprender a contemplar a glória divina na pessoa de Jesus. Um aprendizado essencial para o discipulado, condição para que possa reconhecer nos irmãos e irmãs desfigurados a imagem divina que precisa ser restaurada em sua glória. A fraternidade só pode existir em quem faz experiência de contemplar a glória divina no rosto de Jesus. Assim, ao ver o outro desfigurado, a força da contemplação o impelirá a se empenhar na atividade de devolver o brilho divino a quem o perdeu por algum motivo.

Da contemplação a ação
            Na espiritualidade cristã, a contemplação não é um fim em si mesmo, como se fosse uma dinâmica de autoajuda, mas orienta a empenhar-se no cotidiano e nos relacionamentos da vida. A paz interior, que indiscutivelmente a contemplação produz, não é para ser habitada em tendas longe da vida do povo, como pretendia Pedro, mas para transformar-se em comportamento libertador diante de situações de pecado. É a paz interior necessária para não cair na tentação de resolver as violências sociais com outro tipo de violência. É a paz interior que converte o discípulo e discípula em construtores de novos relacionamentos pela paz e não pela violência. Diante de tantas agressões, quem fez experiência de Deus na e pela contemplação não agride, age com misericórdia, com ternura, com o carinho divino.
            Não se trata de propor novas teorias ou novos conceitos, mas em promover atitudes que favoreçam a libertação do ciclo do pecado, marcado pela violência, pela ganância, pelo exibicionismo, pela prepotência dos ricos... Para o enfrentamento desse ciclo, sem se revoltar e sem provocar quebradeira, como fazem tantos grupos com ideologias políticas inspiradas na violência, o discípulo e discípula de Jesus precisam renovar — em todos os anos da Quaresma — a experiência da contemplação da glória divina em Jesus. Pedro tinha esquecido disso; quando vieram prender Jesus, no Monte das Oliveiras, Pedro desembainhou a espada e feriu a Malco, um dos soldados que vieram prender Jesus. “Guarda tua espada”, disse Jesus (Jo 18,11). O contemplativo aprende que a mudança não acontece pela espada, mas pela ternura e esta só é possível a quem estiver repleto de paz interior.

Esforço impossível?
            Duas desconfianças aparecem na proposta deste segundo encontro quaresmal. A primeira é sobre a eficácia transformadora da contemplação-ativa. De fato, o poder e a força do mundo se mostram mais fortes que a proposta transformadora pelos caminhos da paz e da misericórdia. Parece que se está enxugando gelo. Diante disso, a resposta de Jesus a Paulo deve servir de estímulo: “basta a minha graça” (2Cor 12,9). Quem se empenha nos caminhos da libertação para devolver a imagem e semelhança divina ao rosto humano não perde a paz e nem se sente um inútil porque vive confortado e amparado pela graça divina.
            A segunda desconfiança é sobre o momento da contemplação. Um discípulo menos atento poderia argumentar com Jesus: já teríamos feito um bom trecho de estrada, não fosse essa parada no Monte Tabor. É o engano que a transformação e a conversão do pecado acontecem pelo ativismo. Esta é a ideologia do capitalismo, marcada pela necessidade e pela pressão de produzir para lucrar. O caminho da conversão para o discipulado não se rege nesta proposta; rege-se pela proposta de plantar a semente, de cuidar da semente e saber que outros colham os frutos (1Cor 3,6). Temos o que temos porque milhares de contemplativos semearam as sementes do Evangelho ao longo da história. Chegamos ao conceito dos Direitos Humanos porque, milhares de contemplativos semearam a semente de que a glória divina não pode ser destruída na vida humana.
            “Gloria Dei, homo vivens”, dizia Santo Irineu. A “glória de Deus é o homem vivente”. Toda atividade em favor da vida digna está isenta de qualquer bandeira política ou ideologia, pois se fundamenta e se fortalece na contemplação da glória divina, na pessoa de Jesus, a quem o Pai pede para ouvir e viver o que diz (Mc 9,7).
Serginho Valle

Fevereiro 2018

A Quaresma e seus encontros - encontro consigo mesmo

A Teologia do Ano Litúrgica propõe uma pedagogia espiritual para Quaresma que pode ser explorada de muitos modos. Um deles é considerando o “encontro”, tema fundamental na espiritualidade cristã. De fato, toda espiritualidade gira em torno do encontro, especialmente do encontro com Deus; a espiritualidade é um movimento que conduz ao encontro de Deus. Não existe espiritualidade cristã sem a dinâmica do encontro que, na prática Quaresmal, obedece a três etapas: encontro consigo mesmo, encontro com Deus, encontro com a proposta do discipulado.
A proposta do primeiro encontro é consigo mesmo, no deserto, presente na Liturgia do 1º Domingo da Quaresma. O segundo encontro é com Deus, no Monte Tabor, celebrado no 2º Domingo da Quaresma. Os três outros Domingos — no contexto da Quaresma do Ano B — propõem o encontro com a proposta do discipulado enquanto convite para converter-se em três aspectos: a pureza do culto (3DQ-B), a luz da vida está em Jesus (4DQ-B) e, amor divino na oblação da Cruz (5DQ-B).
            Por hora, vou deter-me somente no primeiro encontro, aquele consigo mesmo, para o qual a Liturgia conduz cada celebrante e toda a Igreja ao deserto. Para isso, é importante que o clima celebrativo respire o silêncio do deserto: silêncio no espaço (sem flores e folhagens), silêncio no modo de cantar (sem batuques e com poucos instrumetnos), silêncio refletido na simplicidade dos ritos; silêncio no modo de celebrar.

Encontro consigo mesmo
A Liturgia celebra o 1º Domingo da Quaresma com três simbolismos: o deserto, o tentador e Jesus. O deserto simboliza o local ideal para o encontro pessoal consigo mesmo. No contexto simbólico desse Domingo quaresmal, o deserto é povoado pelas tentações que prometem a realização da existência humana pelo dinheiro, pela fama e pelo poder. No silêncio do deserto, o homem e a mulher são chamados a dar uma resposta pessoal indicativa de uma opção de vida.
As três tentações fundamentam-se no fazer; em empenhar-se com suas próprias forças para ganhar dinheiro, para ser famoso, para ter poder. São três tentações perigosas porque, quando não existe dedicação ao trabalho honesto, estas tentações, inevitavelmente conduzem à corrupção, levam a um processo existencial que corrompe, corrói e degrada a vida humana. Um modo de esconder a corrupção existencial é a ostentação, outro modo é viver de aparências.
A realidade das tentações só pode ser vencida no deserto, quer dizer, no espaço onde a pessoa encontra-se silenciosamente consigo mesma. É uma batalha espiritual que a pessoa trava entre o crer e o fazer, entre o confiar em Deus e o confiar nas próprias forças. Por isso, a Quaresma é o tempo privilegiado do deserto para propor a fé, no sentido de confiar em Deus, acima da eficiência do fazer.
Aquele que vence as tentações é um vitorioso e seu prêmio é a paz, o contrário da corrupção. É importante considerar que as pessoas corrompidas pelas tentações caminham nos caminhos do ativismo que, na ideologia social de nossos tempos, manifesta-se pela disputa de concorrências. Corrompidos pelo ativismo, freneticamente buscando dinheiro, poder e fama no mercado, essa gente perde a paz. Diante disso, o convite da Quaresma feito na Liturgia: vá para o deserto e coloque-se diante de si mesmo; descubra quem és e coloque sua confiança em Deus para que sua vida não se corrompa, não se deteriore no ativismo.
É preciso estar alerta para perceber o uso da Sagrada Escritura e do Evangelho procurando justificar as tentações do deserto, especialmente presente na chamada Teologia da Prosperidade e que, se não se cuidar, começa a ser sutilmente usada para justificar-se diante de si mesmo, numa espécie de auto complacência espiritual. É preciso ficar alerta e vigilante porque o demônio também se serviu da Sagrada Escritura na tentação de Jesus.

Modelagem em Jesus
            A Liturgia apresenta Jesus como modelo de quem vence o tentador. Algumas vertentes psicológicas propõem a dinâmica da modelagem que, basicamente, consiste em eleger um modelo, uma referência para os momentos mais agudos da vida. Assim, numa situação de crise, a pessoa coloca-se diante de si mesma para interrogar-se: se o “meu modelo” estivesse no meu lugar, o que ele faria? Conhecendo bem o modelo, chega-se a conclusão que atitude tomaria em favor da opção mais correta.
            É uma dinâmica que pode ser aplicada diante das tentações do deserto: se Jesus estivesse sendo tentado no meu lugar, o que ele faria? Se Jesus estivesse sendo tentado a fundamentar sua vida no dinheiro, na fama e no poder, o que ele faria? Conhecendo Jesus, que prioriza o crer e a sua adesão radical ao projeto do Pai, cada celebrante poderá modelar sua opção de vida no modelo Jesus. Destaco três atitudes modeladoras.
            A primeira: buscar o deserto é colocar-se diante de si mesmo para avaliar a proposta tentadora e pode ser feito com interrogações deste tipo: por que esse pensamento roda na minha cabeça? Por que estou tentado a fazer isso? Tal atitude é coerente com minha fé e com minha opção de vida de discípulo do Evangelho?  
            A segunda: é o confronto direto com o tentador. Jesus não argumenta com o tentador, não porque ele seja mais esperto que Jesus, mas porque o tentador não tem nada a acrescentar a Jesus. Simplesmente, não lhe dá ouvidos porque o tentador não pode apresentar uma proposta que dê sentido profundo ao viver.
            A terceira atitude de Jesus é confiar-se a Deus. É interessante perceber que, no dinamismo da espiritualidade quaresmal, este confiar-se a Deus é o resultado de quem se coloca sinceramente diante de si mesmo para sinceramente optar por Deus. É a proposta da Quaresma para renovar — ano após ano — a opção pessoal ao projeto divino. Uma opção pessoal de quem vai ao deserto, confronta-se com as propostas do mundo e se decide pelo projeto de Deus.

Concluindo
            A Quaresma não é tempo exclusivo para penitenciar-se externamente, mas mais apropriado a penitenciar-se internamente. A primeira penitência consiste em colocar-se diante de si mesmo para reconhecer que com as próprias forças se é incapaz de vencer as tentações. Estas só são vencidas somente pela força da fé que é capaz de favorecer a opção radical pelo projeto de Deus. Neste sentido, a Quaresma não é um simples período de tempo proposto no calendário da Igreja, mas é uma dinâmica de conversão a partir de um sincero encontro pessoal consigo mesmo.
Serginho Valle

Fevereiro de 2018

Cinzas: o primeiro passo da Quaresma

A celebração da quarta-feira de cinzas, com o sugestivo rito litúrgico de impor cinzas nas cabeças dos celebrantes é o primeiro passo da peregrinação quaresmal. O sentido de peregrinação é muito apropriado para a Quaresma do Ano B, que conduz seus celebrantes para o silêncio do deserto (1DQ-B) e para o silêncio do Tabor (2DQ-B); para a purificação no culto a Deus (3DQ-B), para iluminar a vida no Evangelho (4DQ-B) e para a fidelidade a Jesus até o momento do seu martírio (5DQ-B).
            A Quaresma é um dom a ser acolhido com simplicidade por quem se faz discípulo e discípula de Jesus. Não é um tempo de penitência, no sentido de buscar sofrimentos, pequenos ou grandes, como por exemplo, se abster de comer ou beber algo que gosta; isto é bom e salutar, desde que a renúncia se estenda por toda a vida. Não tanto um tempo de penitência em busca de sofrimentos de abstenção, repetindo, mas uma peregrinação com o propósito de conduzir a vida a um sentido pelo qual valha a pena viver.
Esta é um das finalidades, pelas quais a Igreja impõe as cinzas na cabeça de seus filhos e filhas: para lembrar que a vida é passageira, não somente no sentido do passar do tempo que envelhece, mas no sentido que o tempo nos torna passageiros e nos conduz a um destino. Para onde vamos? Para onde vou?
            “O Espírito conduz Jesus ao deserto”, diz o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma. Jesus conduz seus discípulos ao Monte Tabor, diz o Evangelho do 2º Domingo da Quaresma. Ser conduzido, deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus, deixar-se conduzir por Jesus. As cinzas dizem que somos passageiros do tempo; a Liturgia dos dois primeiros Domingos da Quaresma propõe que, quais passageiros nos deixemos conduzir pelo Espírito de Deus e pelo próprio Jesus, nesta peregrinação.

Quaresma paroquial
            A paróquia tem a função de favorecer a peregrinação de cada um de seus paroquianos, no tempo da Quaresma. Penso em três elementos para que isso possa acontecer. O primeiro é considerar a Quaresma como um tempo privilegiado da espiritualidade comunitária. A Campanha da Fraternidade tem sua importância e sua necessidade, mas a espiritualidade da Quaresma nutre a espiritualidade com a Palavra, o silêncio e a oração e esta nutrição não pode ser ignorada. O segundo elemento é o itinerário litúrgico Quaresmal; para isso, a Equipe Litúrgica e as Equipes de Celebrações, juntamente com o padre — especialmente no que concerne à homilia — podem traçar um fio condutor que une um Domingo ao outro para favorecer o crescimento espiritual dos paroquianos em vista da conversão pessoal. O terceiro elemento é social; é aqui que entra a Campanha da Fraternidade como proposta de reflexão, sempre iluminada pela Palavra, num contínuo processo de conversão social e comunitária.
            Estes três elementos ajudam a evitar dois riscos: a teorização da espiritualidade quaresmal, feita de muitas pregações, recomendações e discursos e, o outro risco, aquele do ativismo, de criar “atividades quaresmais”, seja do lado devocional (procissões e caminhadas, por exemplo), seja do lado social, promovendo simpósios e debates sobre o tema da Campanha da Fraternidade, por exemplo. Nada disso é prejudicial desde que favorece e nutra a espiritualidade.
            As pregações quaresmais, por exemplo, são uma tradição antiquíssima na Igreja. Têm o seu valor, desde que não perca de vista o cenário que é proposto para a Quaresma nos dois primeiros Domingos: um cenário de deserto e de montanha; dois espaços rodeados pelo silêncio. Quaresma é essencialmente convite a silenciar para ouvir a Palavra de Deus, para ouvir a voz de Deus, presente na Palavra, presente no Evangelho mais que a voz humana.  
            Transformar a Quaresma em tempo de ativismo social com debates é um risco porque fere justamente o aspecto da peregrinação silenciosa da Quaresma. O debate acalora os ânimos e agita o interior da pessoa. A peregrinação, como dizia acima, é para acompanhar, num primeiro momento, Jesus ao deserto e ao Tabor. O risco do ativismo social na Quaresma, além do mais, pode conduzir a ideologias ou a partidarismos políticos, um risco ainda mais acentuado em anos eleitorais.

Peregrinar com cinzas na cabeça
            A peregrinação quaresmal, por fim, é realizada e vivenciada com cinzas sobre as cabeças dos discípulos e discípulas de Jesus. O Papa Bento XVI, em sua mensagem quaresmal para o ano de 2006, ajudava a entender que as cinzas sobre as cabeças indicam nossa condição de passageiros do tempo e no mundo. Passageiros que considera as cinzas como sinal da finitude. Disso, a proposta de conversão, à medida que se vai peregrinando pelas estradas deste mundo que passa. Uma peregrinação que nos coloca na necessidade de avaliar o olhar, o modo como olhamos as pessoas, como vemos a comunidade para, passo a passo, em ritmo de peregrinação, ir configurando o modo de ver a realidade da vida a partir do olhar de Jesus.
            Caminhar pela vida, peregrinar pela história com os olhos de Jesus. Esta é uma grande penitência, porque exige a renúncia do próprio ponto de vista, para olhar a realidade com outros olhos, com os olhos de Jesus, iluminando-se com a luz do Evangelho. Para isso, a necessidade de silenciar, de realizar a peregrinação interior para modelar o coração humano no Coração divino de Jesus.
            Silenciar, especialmente nas celebrações, porque é impossível viver a Quaresma sem o silêncio do deserto e sem o silêncio do Tabor.
Serginho Valle
Fevereiro de 2018



Ministério do leitorato e espiritualidade

Ministério do leitorato e espiritualidade O Ministério do Leitorato , a pessoa que se dedica a proclamar a Palavra na Liturgia em celebraçõe...