No
primeiro momento, a Quaresma conduz o homem e a mulher para o deserto, local
que silencia todo tipo de relacionamento, ideal para encontrar-se consigo
mesmo. Nos encontros da Quaresma, o primeiro deles propõe um encontro pessoal
consigo mesmo, na quietude do deserto. Um encontro para escolher o essencial e
não ceder à nenhum tipo de tentação, que sempre conduz ao abandono de Deus.
No segundo momento da Quaresma, é o
próprio Jesus que toma seus discípulos para conduzi-los a outro local
silencioso: a montanha. É o cenário e o contexto da celebração do 2º Domingo da
Quaresma. A montanha, na simbologia Bíblica, indica a necessidade do empenho na
subida, indica a proximidade com Deus, que vive no alto e indica a importância
de separar-se do mundo para encontrar-se com Deus. Não é um local definitivo,
como demonstra a cena da Transfiguração, no Monte Tabor (Mc 9,2-10). Jesus não
acolhe a ideia de Pedro para construir tendas, mas reconduz seus discípulos
para o meio do povo. Mesmo assim, é uma subida necessária e importantíssima no
discipulado cristão.
Nos encontros que a Quaresma
promove, trata-se, portanto, de um segundo encontro. Depois de encontrar-se
consigo mesmo, no silêncio do deserto, a necessidade de encontrar-se com Deus,
no silêncio da montanha. Mensagem clara que Deus se manifesta no silêncio e que
o silêncio é uma morada divina. Entrar no silêncio para fazer experiência de
Deus. Este é o convite do segundo encontro proposto pela caminhada da Quaresma.
Um convite imprescindível para o crescimento na espiritualidade do discipulado.
Uma experiência, igualmente imprescindível, no processo contínuo e sempre
necessário da conversão.
Contemplar a glória divina no Senhor
Na experiência de encontrar-se com
Deus, o discípulo e discípula de Jesus são chamados a conhecer a identidade de
Jesus. Uma experiência excitante, contemplada na Transfiguração do Senhor
(2DQ). Não estou falando de visão, mas de contemplação. Não apenas ver, mas
entrar no Mistério de Jesus pela contemplação, uma das maiores e mais
extraordinária experiência da espiritualidade cristã: a experiência da
contemplação.
Grande parte das pregações
quaresmais contenta-se em destacar a beleza de Jesus na Transfiguração e o
pedido de Jesus para descer a montanha, passando a impressão que o mais
importante é não ficar longe do povo. É um equívoco cometido por quem se deixa
contaminar pelo ativismo. Não existe atividade frutuosa junto ao povo, seja em
pastorais ou em outras atividades, sem o silêncio da contemplação, sem a força
da oração silenciosa. Não existe testemunho cristão qualificado de leigos e
leigas, de bispos e padres, de religiosos e religiosas sem o encontro
silencioso com o Senhor, na e pela contemplação. No contexto dos encontros
quaresmais, a contemplação ocupa o centro de quem se decide a entrar no caminho
da conversão.
A espiritualidade litúrgica ensina
que a Transfiguração, celebrada no início da Quaresma, é um modo de encorajar
os discípulos e discípulas de Jesus a não perderem a fé, no momento da
desfiguração de Jesus, pendente na Cruz. Transfiguração e desfiguração são
irmãs na vida cristã. Irmãs no Cristo transfigurado, contemplado no silêncio da
montanha, e no Cristo desfigurado, contemplado na sua Cruz e nas cruzes de
tantos irmãos e irmãs com quem nos deparamos, quando descemos a montanha
silenciosa da contemplação e ingressamos na planície barulhenta e tumultuada da
vida diária.
O segundo encontro da Quaresma
convida a aprender a contemplar a glória divina na pessoa de Jesus. Um
aprendizado essencial para o discipulado, condição para que possa reconhecer
nos irmãos e irmãs desfigurados a imagem divina que precisa ser restaurada em
sua glória. A fraternidade só pode existir em quem faz experiência de
contemplar a glória divina no rosto de Jesus. Assim, ao ver o outro
desfigurado, a força da contemplação o impelirá a se empenhar na atividade de
devolver o brilho divino a quem o perdeu por algum motivo.
Da contemplação a ação
Na espiritualidade cristã, a contemplação
não é um fim em si mesmo, como se fosse uma dinâmica de autoajuda, mas orienta
a empenhar-se no cotidiano e nos relacionamentos da vida. A paz interior, que
indiscutivelmente a contemplação produz, não é para ser habitada em tendas longe
da vida do povo, como pretendia Pedro, mas para transformar-se em comportamento
libertador diante de situações de pecado. É a paz interior necessária para não cair
na tentação de resolver as violências sociais com outro tipo de violência. É a
paz interior que converte o discípulo e discípula em construtores de novos
relacionamentos pela paz e não pela violência. Diante de tantas agressões, quem
fez experiência de Deus na e pela contemplação não agride, age com
misericórdia, com ternura, com o carinho divino.
Não se trata de propor novas teorias
ou novos conceitos, mas em promover atitudes que favoreçam a libertação do
ciclo do pecado, marcado pela violência, pela ganância, pelo exibicionismo,
pela prepotência dos ricos... Para o enfrentamento desse ciclo, sem se revoltar
e sem provocar quebradeira, como fazem tantos grupos com ideologias políticas inspiradas
na violência, o discípulo e discípula de Jesus precisam renovar — em todos os
anos da Quaresma — a experiência da contemplação da glória divina em Jesus. Pedro
tinha esquecido disso; quando vieram prender Jesus, no Monte das Oliveiras,
Pedro desembainhou a espada e feriu a Malco, um dos soldados que vieram prender
Jesus. “Guarda tua espada”, disse Jesus (Jo 18,11). O contemplativo aprende que
a mudança não acontece pela espada, mas pela ternura e esta só é possível a
quem estiver repleto de paz interior.
Esforço impossível?
Duas desconfianças aparecem na
proposta deste segundo encontro quaresmal. A primeira é sobre a eficácia
transformadora da contemplação-ativa. De fato, o poder e a força do mundo se
mostram mais fortes que a proposta transformadora pelos caminhos da paz e da
misericórdia. Parece que se está enxugando gelo. Diante disso, a resposta de
Jesus a Paulo deve servir de estímulo: “basta a minha graça” (2Cor 12,9). Quem
se empenha nos caminhos da libertação para devolver a imagem e semelhança
divina ao rosto humano não perde a paz e nem se sente um inútil porque vive
confortado e amparado pela graça divina.
A segunda desconfiança é sobre o
momento da contemplação. Um discípulo menos atento poderia argumentar com Jesus:
já teríamos feito um bom trecho de estrada, não fosse essa parada no Monte
Tabor. É o engano que a transformação e a conversão do pecado acontecem pelo
ativismo. Esta é a ideologia do capitalismo, marcada pela necessidade e pela
pressão de produzir para lucrar. O caminho da conversão para o discipulado não
se rege nesta proposta; rege-se pela proposta de plantar a semente, de cuidar
da semente e saber que outros colham os frutos (1Cor 3,6). Temos o que temos
porque milhares de contemplativos semearam as sementes do Evangelho ao longo da
história. Chegamos ao conceito dos Direitos Humanos porque, milhares de contemplativos
semearam a semente de que a glória divina não pode ser destruída na vida
humana.
“Gloria Dei, homo vivens”, dizia
Santo Irineu. A “glória de Deus é o homem vivente”. Toda atividade em favor da
vida digna está isenta de qualquer bandeira política ou ideologia, pois se
fundamenta e se fortalece na contemplação da glória divina, na pessoa de Jesus,
a quem o Pai pede para ouvir e viver o que diz (Mc 9,7).
Serginho Valle
Fevereiro 2018
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