A
Teologia do Ano Litúrgica propõe uma pedagogia espiritual para Quaresma que
pode ser explorada de muitos modos. Um deles é considerando o “encontro”, tema
fundamental na espiritualidade cristã. De fato, toda espiritualidade gira em
torno do encontro, especialmente do encontro com Deus; a espiritualidade é um
movimento que conduz ao encontro de Deus. Não existe espiritualidade cristã sem
a dinâmica do encontro que, na prática Quaresmal, obedece a três etapas: encontro
consigo mesmo, encontro com Deus, encontro com a proposta do discipulado.
A
proposta do primeiro encontro é consigo mesmo, no deserto, presente na Liturgia
do 1º Domingo da Quaresma. O segundo encontro é com Deus, no Monte Tabor,
celebrado no 2º Domingo da Quaresma. Os três outros Domingos — no contexto da
Quaresma do Ano B — propõem o encontro com a proposta do discipulado enquanto convite
para converter-se em três aspectos: a pureza do culto (3DQ-B), a luz da vida
está em Jesus (4DQ-B) e, amor divino na oblação da Cruz (5DQ-B).
Por hora, vou deter-me somente no
primeiro encontro, aquele consigo mesmo, para o qual a Liturgia conduz cada
celebrante e toda a Igreja ao deserto. Para isso, é importante que o clima
celebrativo respire o silêncio do deserto: silêncio no espaço (sem flores e
folhagens), silêncio no modo de cantar (sem batuques e com poucos instrumetnos),
silêncio refletido na simplicidade dos ritos; silêncio no modo de celebrar.
Encontro consigo mesmo
A
Liturgia celebra o 1º Domingo da Quaresma com três simbolismos: o deserto, o
tentador e Jesus. O deserto simboliza o local ideal para o encontro pessoal
consigo mesmo. No contexto simbólico desse Domingo quaresmal, o deserto é povoado
pelas tentações que prometem a realização da existência humana pelo dinheiro, pela
fama e pelo poder. No silêncio do deserto, o homem e a mulher são chamados a
dar uma resposta pessoal indicativa de uma opção de vida.
As
três tentações fundamentam-se no fazer; em empenhar-se com suas próprias forças
para ganhar dinheiro, para ser famoso, para ter poder. São três tentações
perigosas porque, quando não existe dedicação ao trabalho honesto, estas
tentações, inevitavelmente conduzem à corrupção, levam a um processo existencial
que corrompe, corrói e degrada a vida humana. Um modo de esconder a corrupção
existencial é a ostentação, outro modo é viver de aparências.
A
realidade das tentações só pode ser vencida no deserto, quer dizer, no espaço
onde a pessoa encontra-se silenciosamente consigo mesma. É uma batalha
espiritual que a pessoa trava entre o crer e o fazer, entre o confiar em Deus e
o confiar nas próprias forças. Por isso, a Quaresma é o tempo privilegiado do
deserto para propor a fé, no sentido de confiar em Deus, acima da eficiência do
fazer.
Aquele
que vence as tentações é um vitorioso e seu prêmio é a paz, o contrário da
corrupção. É importante considerar que as pessoas corrompidas pelas tentações caminham
nos caminhos do ativismo que, na ideologia social de nossos tempos, manifesta-se
pela disputa de concorrências. Corrompidos pelo ativismo, freneticamente
buscando dinheiro, poder e fama no mercado, essa gente perde a paz. Diante
disso, o convite da Quaresma feito na Liturgia: vá para o deserto e coloque-se
diante de si mesmo; descubra quem és e coloque sua confiança em Deus para que
sua vida não se corrompa, não se deteriore no ativismo.
É
preciso estar alerta para perceber o uso da Sagrada Escritura e do Evangelho procurando
justificar as tentações do deserto, especialmente presente na chamada Teologia
da Prosperidade e que, se não se cuidar, começa a ser sutilmente usada para
justificar-se diante de si mesmo, numa espécie de auto complacência espiritual.
É preciso ficar alerta e vigilante porque o demônio também se serviu da Sagrada
Escritura na tentação de Jesus.
Modelagem em Jesus
A
Liturgia apresenta Jesus como modelo de quem vence o tentador. Algumas
vertentes psicológicas propõem a dinâmica da modelagem que, basicamente,
consiste em eleger um modelo, uma referência para os momentos mais agudos da
vida. Assim, numa situação de crise, a pessoa coloca-se diante de si mesma para
interrogar-se: se o “meu modelo” estivesse no meu lugar, o que ele faria?
Conhecendo bem o modelo, chega-se a conclusão que atitude tomaria em favor da
opção mais correta.
É uma dinâmica que pode ser aplicada
diante das tentações do deserto: se Jesus estivesse sendo tentado no meu lugar,
o que ele faria? Se Jesus estivesse sendo tentado a fundamentar sua vida no
dinheiro, na fama e no poder, o que ele faria? Conhecendo Jesus, que prioriza o
crer e a sua adesão radical ao projeto do Pai, cada celebrante poderá modelar
sua opção de vida no modelo Jesus. Destaco três atitudes modeladoras.
A primeira: buscar o deserto é
colocar-se diante de si mesmo para avaliar a proposta tentadora e pode ser
feito com interrogações deste tipo: por que esse pensamento roda na minha
cabeça? Por que estou tentado a fazer isso? Tal atitude é coerente com minha fé
e com minha opção de vida de discípulo do Evangelho?
A segunda: é o confronto direto com
o tentador. Jesus não argumenta com o tentador, não porque ele seja mais
esperto que Jesus, mas porque o tentador não tem nada a acrescentar a Jesus.
Simplesmente, não lhe dá ouvidos porque o tentador não pode apresentar uma
proposta que dê sentido profundo ao viver.
A terceira atitude de Jesus é confiar-se
a Deus. É interessante perceber que, no dinamismo da espiritualidade quaresmal,
este confiar-se a Deus é o resultado de quem se coloca sinceramente diante de
si mesmo para sinceramente optar por Deus. É a proposta da Quaresma para
renovar — ano após ano — a opção pessoal ao projeto divino. Uma opção pessoal
de quem vai ao deserto, confronta-se com as propostas do mundo e se decide pelo
projeto de Deus.
Concluindo
A
Quaresma não é tempo exclusivo para penitenciar-se externamente, mas mais
apropriado a penitenciar-se internamente. A primeira penitência consiste em colocar-se
diante de si mesmo para reconhecer que com as próprias forças se é incapaz de
vencer as tentações. Estas só são vencidas somente pela força da fé que é capaz
de favorecer a opção radical pelo projeto de Deus. Neste sentido, a Quaresma
não é um simples período de tempo proposto no calendário da Igreja, mas é uma
dinâmica de conversão a partir de um sincero encontro pessoal consigo mesmo.
Serginho Valle
Fevereiro de 2018
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