A
celebração da quarta-feira de cinzas, com o sugestivo rito litúrgico de impor
cinzas nas cabeças dos celebrantes é o primeiro passo da peregrinação
quaresmal. O sentido de peregrinação é muito apropriado para a Quaresma do Ano
B, que conduz seus celebrantes para o silêncio do deserto (1DQ-B) e para o
silêncio do Tabor (2DQ-B); para a purificação no culto a Deus (3DQ-B), para iluminar
a vida no Evangelho (4DQ-B) e para a fidelidade a Jesus até o momento do seu
martírio (5DQ-B).
A Quaresma é um dom a ser acolhido
com simplicidade por quem se faz discípulo e discípula de Jesus. Não é um tempo
de penitência, no sentido de buscar sofrimentos, pequenos ou grandes, como por
exemplo, se abster de comer ou beber algo que gosta; isto é bom e salutar,
desde que a renúncia se estenda por toda a vida. Não tanto um tempo de
penitência em busca de sofrimentos de abstenção, repetindo, mas uma
peregrinação com o propósito de conduzir a vida a um sentido pelo qual valha a
pena viver.
Esta
é um das finalidades, pelas quais a Igreja impõe as cinzas na cabeça de seus
filhos e filhas: para lembrar que a vida é passageira, não somente no sentido
do passar do tempo que envelhece, mas no sentido que o tempo nos torna
passageiros e nos conduz a um destino. Para onde vamos? Para onde vou?
“O Espírito conduz Jesus ao
deserto”, diz o Evangelho do 1º Domingo da Quaresma. Jesus conduz seus
discípulos ao Monte Tabor, diz o Evangelho do 2º Domingo da Quaresma. Ser
conduzido, deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus, deixar-se conduzir por
Jesus. As cinzas dizem que somos passageiros do tempo; a Liturgia dos dois
primeiros Domingos da Quaresma propõe que, quais passageiros nos deixemos
conduzir pelo Espírito de Deus e pelo próprio Jesus, nesta peregrinação.
Quaresma paroquial
A paróquia tem a função de favorecer
a peregrinação de cada um de seus paroquianos, no tempo da Quaresma. Penso em três
elementos para que isso possa acontecer. O primeiro é considerar a Quaresma
como um tempo privilegiado da espiritualidade comunitária. A Campanha da
Fraternidade tem sua importância e sua necessidade, mas a espiritualidade da
Quaresma nutre a espiritualidade com a Palavra, o silêncio e a oração e esta
nutrição não pode ser ignorada. O segundo elemento é o itinerário litúrgico
Quaresmal; para isso, a Equipe Litúrgica e as Equipes de Celebrações,
juntamente com o padre — especialmente no que concerne à homilia — podem traçar
um fio condutor que une um Domingo ao outro para favorecer o crescimento
espiritual dos paroquianos em vista da conversão pessoal. O terceiro elemento é
social; é aqui que entra a Campanha da Fraternidade como proposta de reflexão,
sempre iluminada pela Palavra, num contínuo processo de conversão social e
comunitária.
Estes três elementos ajudam a evitar
dois riscos: a teorização da espiritualidade quaresmal, feita de muitas
pregações, recomendações e discursos e, o outro risco, aquele do ativismo, de
criar “atividades quaresmais”, seja do lado devocional (procissões e
caminhadas, por exemplo), seja do lado social, promovendo simpósios e debates
sobre o tema da Campanha da Fraternidade, por exemplo. Nada disso é prejudicial
desde que favorece e nutra a espiritualidade.
As pregações quaresmais, por
exemplo, são uma tradição antiquíssima na Igreja. Têm o seu valor, desde que
não perca de vista o cenário que é proposto para a Quaresma nos dois primeiros
Domingos: um cenário de deserto e de montanha; dois espaços rodeados pelo
silêncio. Quaresma é essencialmente convite a silenciar para ouvir a Palavra de
Deus, para ouvir a voz de Deus, presente na Palavra, presente no Evangelho mais
que a voz humana.
Transformar a Quaresma em tempo de
ativismo social com debates é um risco porque fere justamente o aspecto da
peregrinação silenciosa da Quaresma. O debate acalora os ânimos e agita o
interior da pessoa. A peregrinação, como dizia acima, é para acompanhar, num
primeiro momento, Jesus ao deserto e ao Tabor. O risco do ativismo social na
Quaresma, além do mais, pode conduzir a ideologias ou a partidarismos
políticos, um risco ainda mais acentuado em anos eleitorais.
Peregrinar com cinzas na cabeça
A peregrinação quaresmal, por fim, é
realizada e vivenciada com cinzas sobre as cabeças dos discípulos e discípulas
de Jesus. O Papa Bento XVI, em sua mensagem quaresmal para o ano de 2006, ajudava
a entender que as cinzas sobre as cabeças indicam nossa condição de passageiros
do tempo e no mundo. Passageiros que considera as cinzas como sinal da
finitude. Disso, a proposta de conversão, à medida que se vai peregrinando
pelas estradas deste mundo que passa. Uma peregrinação que nos coloca na
necessidade de avaliar o olhar, o modo como olhamos as pessoas, como vemos a
comunidade para, passo a passo, em ritmo de peregrinação, ir configurando o
modo de ver a realidade da vida a partir do olhar de Jesus.
Caminhar pela vida, peregrinar pela
história com os olhos de Jesus. Esta é uma grande penitência, porque exige a
renúncia do próprio ponto de vista, para olhar a realidade com outros olhos,
com os olhos de Jesus, iluminando-se com a luz do Evangelho. Para isso, a
necessidade de silenciar, de realizar a peregrinação interior para modelar o
coração humano no Coração divino de Jesus.
Silenciar, especialmente nas
celebrações, porque é impossível viver a Quaresma sem o silêncio do deserto e
sem o silêncio do Tabor.
Serginho Valle
Fevereiro de 2018
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