O Ministério do Leitorato, a pessoa que se dedica a proclamar a Palavra na Liturgia em celebrações litúrgicas é alguém que está em contato mais íntimo com a Palavra de Deus. Assim, ao menos, deveria ser. Existem modos e modos de se estar em contato com a Palavra de Deus e com finalidades diferentes: estudo, conhecimento, curiosidade, oração… Entre esses modos e finalidades está o contato com a Palavra para fortalecer o crescimento espiritual. Isto serve para todos os cristãos e cristãs, mas tem um diferencial, tem uma espécie de necessidade, para quem atua no ministério do leitorato.
Em comunidades que não têm uma Pastoral Litúrgica organizada, e isso se reflete na ausência do Ministério do Leitorato, a maior parte dos leitores e leitoras só entra em contato com a Palavra que irá proclamar minutos antes da Missa. Ou nem isso, pela impossibilidade do tempo, pois são escolhidos poucos minutos antes da Missa começar. Já vi padre convidando algum voluntário para “fazer a leitura”. São atitudes de comunidades, como dizia, sem a PLP (Pastoral Litúrgica Paroquial) (leia mais em https://liturgiasal.blogspot.com/2025/02/planejamento-da-pastoral-liturgica.html ) que tratam a Liturgia da Palavra de modo despreparado e desrespeitoso. Quando se valoriza a Palavra com aquilo que é, Palavra de Deus, quando se tem consciência de que se trata de “Palavra de Deus”, o tratamento é diferenciado especialmente para quem se dispõe a proclamar a “Palavra de Deus” na comunidade durante uma celebração litúrgica.
Como já tenho abordado esse tema do respeito à “Palavra de Deus” em outros artigos, gostaria de chamar sua atenção para a oportunidade que o Ministério do Leitorato oferece a quem é escolhido (eleito) para ser leitor e leitora da Palavra na Liturgia. Penso da oportunidade de se alimentar espiritualmente da “Palavra de Deus” e, em vez de apenas “fazer a leitura” na Missa, como dizia aquele padre convidando um voluntário. Estou falando da oportunidade de tornar o contato através do conhecimento da leitura que proclamará na Missa ou em outra celebração, tomar contato dedicando um tempo de meditação, de oração daquele perícope antes da proclamação. Não resta dúvida que se trata de uma fonte riquíssima de crescimento espiritual. Este é o melhor modo de se preparar para proclamar a “Palavra de Deus” na assembleia litúrgica da comunidade. É importantíssimo proclamar bem a Palavra (leitura), mas não é o suficiente para quem exerce ou para quem foi instituído no Ministério do Leitorado.
A Palavra
alimenta a vida espiritual
O que estou
propondo tem a ver com a alimentação da vida espiritual. Nesse sentido, o
leitor e a leitora são privilegiados em considerar a Palavra como alimento da
vida espiritual pessoal. Aproveitar essa oportunidade de “preparar as leituras”
alimentando a sua vida espiritual com a Palavra que proclamará na assembleia.
A espiritualidade no Ministério do Leitorato consiste em acolher na vida pessoal a Palavra que irá proclamar para pensar como Deus pensa e, para isso é necessário ruminar sua Palavra no coração e na mente. Quer dizer: ler, acolher, ruminar e partilhar a Palavra na assembleia pela proclamação. O movimento espiritual consiste em colocar a “Palavra de Deus” no coração antes de proclamá-la na assembleia a ponto de ser luz existencial na vida do cristão e cristã. Uma vez que a Palavra está no coração do leitor e da leitora, ele poderá se tornar semeador dessa Palavra. — Como um semeador por semear a semente se ele não tem as sementes consigo? Como um leitor ou leitora poderá semear a Palavra se não coloca sementes da Palavra no seu coração? É esse um viés importante a ser considerado na espiritualidade de quem se dedica ao Ministério do Leitorato.
São João da Cruz, que figura como referência entre os maiores místicos cristãos, tem um ensinamento que diz: "O Pai pronunciou uma Palavra, que é o seu Filho e sempre a repete num eterno silêncio; por isso é no silêncio e em silêncio que ela deve ser ouvida dentro da alma". É assim que o santo místico se expressa na sua obra “Palavra de luz e amor”. Serve como orientação para o crescimento da vida espiritual de quem exercer o Leitorato na comunidade paroquial: preparar-se para proclamar a Palavra lendo-a, meditando-a e rezando-a no silêncio do seu quarto (Mt 6,6).
A vida espiritual acontece em quem faz experiência pessoal com Deus e esta experiência realiza-se pelo acolhimento da Palavra, particularmente do Evangelho. É o relato da experiência do autor da Carta aos Hebreus: “pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e as intenções do coração.” (Hb 4,12). Penetra, corta, atinge a profundidade da vida pessoal. É a experiência da meditação da Palavra que o leitor e a leitura, pacientemente, vão realizando em suas vidas. Disso a importância de leitores e leitoras que exerçam o Ministério do Leitorato como quem tem experiência da Palavra pela meditação e pelo cultivo da Palavra na vida pessoal.
A
experiência da Palavra pela meditação, pela oração, pelo estudo, pela ruminação
da parte de quem exerce o ministério do leitorato vai se deparar com um fato
que precisa ser considerado, em relação à espiritualidade: a alteridade.
Nós, homens e mulheres, precisamos da Palavra para criar comunhão de
alteridade, de contato com o outro. Em relação a Deus, é o contrário. Deus
precisa silêncio para falar e ser ouvido no silêncio secretíssimo da consciência.
A Gaudium et Spes diz: “a consciência é o centro mais secreto
e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz
ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16).
O tempo de preparação de uma leitura que será proclamada na assembleia litúrgica
da comunidade deve (deveria) ser momento de encontro profundamente pessoal com
Deus no “sacrário da consciência”. Momento que alimenta a vida
espiritual do leitor e da leitora.
Entendemos isso a partir da experiência de Elias, que precisa silenciar para sentir a brisa suave da Palavra tocando seu rosto, abrindo seus olhos para ver a estrada que deveria seguir antes de continuar seu ministério profético de anunciar a Palavra. Esta é uma experiência da transcendência da Palavra de Deus (1Rs 19,11-13). A Palavra sempre produz frutos quando semeada e acolhida silenciosamente, como diz a profecia de Isaías (Is 55,10-11). É também Palavra para ser ouvida silenciosamente, acolhendo a ação espiritual do Espírito Santo em forma carismática para o bem de toda a comunidade. Nesse sentido, a preparação das leituras da parte do leitor e da leitora deveria ser um tempo privilegiado a ponto de ser uma experiência de Deus, que considera a necessidade do silêncio e do silenciamento total para ouvir a voz divina. Nada disso é possível em comunidades sem estrutura e sem organização de PLP (Pastoral Litúrgica Paroquial), pois funcionam no improviso.
Deus é
silencioso
Em uma aula
de Teologia Dogmática, na minha juventude, meu professor, Pe. José Knob, scj,
propôs uma reflexão sobre a passagem de Isaías que define Deus como "abscondidus"
- "Deus abscondindus es" — “vere tu es Deus
absconditus Deus Israel, salvator” — O texto da Bíblia Ave Maria traduz:
“Verdadeiramente Deus se esconde em tua casa, o Deus de
Israel, um Deus que salva!” (Is 45,15).
Gosto da tradução “Um
Deus se esconde em tua casa” porque com ela posso dizer ao leitor e à
leitora que prepara a leitura em sua casa que Deus está ali escondido,
revelando-se e entrando em conversa com o leitor e a leitora na meditação e na
oração silenciosa preparando-se para proclamar a leitura na assembleia
litúrgica.
A imagem mais dramática e, por isso, a mais eloquente do silêncio de Deus, é a de Jesus pendente na Cruz, totalmente silencioso e silenciado. Na Cruz, Jesus é o Deus calado, o Deus totalmente silencioso. Diante do silêncio de Deus, na Cruz, os místicos interrogam: este silêncio divino revela a ausência ou a essência de Deus? Revela a essência divina, especialmente na experiência humana do sofrimento. É a experiência humana do salmista sofredor que entra em contato com Deus no silêncio. Ele diz: "por isso meu coração está em paz " (Sl 46,1-3). É o coração pacificado de quem aprendeu a meditar e ruminar no silêncio a Palavra de Deus. Este é um coração preparado para proclamar e partilhar a Palavra de Deus com seus irmãos e irmãs na assembleia litúrgica.
Nas minhas fichas de leitura, encontrei uma que anotava sobre o silêncio que transcrevo para partilhar contigo a experiência de Deus balbuciando no silêncio. A ficha é um texto de F. Julien. No original em italiano: "Ogni cosa si trasforma in silenzio" — “cada coisa se transforma silenciosamente” —. Traduzo livremente: "Na natureza não se ouvem os rios escavar seus leitos ou o vento modelar os cimos das montanhas, mas foram eles que desenharam, pouco a pouco, os relevos que temos diante dos olhos e formaram as paisagens. (...). Da mesma forma não percebemos que nossos filhos crescem; ou nós mesmos que envelhecemos (...). Aquilo que, num tempo pensávamos impossível, ou que nem mesmo imaginávamos, é o resultado desse acontecimento silencioso que, a bem da verdade, não podemos nos opor: apenas admirar."
Serginho Valle
Julho 2025
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