A
frase “celebrar a vida” sempre aparece em textos litúrgicos, em palestres a
reflexões sobre a Liturgia. É uma frase genérica e, por isso, aberta a muitos
aspectos da vida pessoal e social. Um destes aspectos é a questão política, da
qual fazem parte os celebrantes. Mas, quando este tema aparece celebração,
muita gente torce o nariz, e muitos alegam que se está transformando o
presbitério em palanque político.
Defendo que a celebração precisa
manter suas características religiosas, especialmente a dimensão orante. Mas,
juntamente com a dimensão orante, existe aquela reflexiva, própria da Lectio
Divina, que antecede a celebração (na preparação) e que a contextualiza,
particularmente no momento da homilia. Ou seja, é a Palavra que conduz a vida
pessoal, social e política para dentro da celebração. Isto ajuda-nos a perceber
que o tema “política, crise e moral” tem sentido quando introduzida no contexto
da proclamação da Palavra. Neste caso, a “celebração da vida” comporta também a
questão política. Vários textos bíblicos proclamados nas celebrações relatam
fatos políticos, seja do Antigo como do Novo Testamento. O ponto está em
compreender que aqueles fatos políticos, relatados em tantas Liturgias da
Palavra, revelam a ação divina na condução do povo, para que a vida do povo
fosse preservada.
O critério proposto pela Pastoral
Litúrgica, e com sustentação na Teologia Litúrgica, orienta a ler a realidade
pessoal e social com a luz da Palavra; favorecer de modo cristão, sempre
iluminando-se na Palavra, a compreender a proposta divina para este momento
histórico e, propor um compromisso de mudança social a partir da Palavra de
Deus. Quando a política aparece nas celebrações não se tem em mente uma opinião
partidária, a defesa ou a promoção de um político, ou a preferência por uma
ideologia; nada disso. Mas única e exclusivamente analisar a realidade
sócio-política atual à luz da Palavra de Deus.
Dois exemplos clássicos ajudam-nos a
compreender este fato. A Liturgia do 26º Domingo do Tempo Comum - C proclama,
na 1ª leitura, um texto de Amós (Am 6,14-7). É uma crítica severa aos
governantes e políticos que vivem as custas do povo, acumulando riquezas pela
corrupção e empobrecendo o povo pobre pela carga de impostos. É um texto que
retrata, fotografa, a realidade brasileira deste momento histórico. Aqui, a
Liturgia chama atenção dos celebrantes para os políticos mal-intencionados que
pensam unicamente em si e nos interesses de seus partidos. Um modo de perceber
que se trata de um pecado social que desagrada a Deus. Se o padre, na homilia,
fizer uma comparação com a gestão política brasileira não está nem a favor e
nem contra um partido político, mas a favor do pensamento divino, que condena
quem se serve do poder para enriquecer-se e oprimir o povo.
Um outro exemplo vem do Evangelho: a
multiplicação dos pães (Jo 6,1-15), proclamada no 17º Domingo do Tempo Comum –
B. A homilia poderá ressaltar o valor da partilha, o gesto do garoto que oferece
a Jesus tudo que tem, ou, fazer uma homilia para espiritualizar o fato ou,
ainda, se deixar iluminar pelo contexto social atual e refletir sobre uma nova
ordem política, não fundamentada no capitalismo do lucro financeiro, mas na
partilha, na valorização da pessoa humana. No atual contexto social e político,
no qual se revela um esquema corrupto de políticos e empresários, esta seria a
escolha mais real e oportuna. Neste caso, o padre ao condenar tal estrutura e
propor uma nova ordem social, não está fazendo propaganda política, mas
refletindo a atual conjuntura política e social à luz do Evangelho e da
Doutrina Social da Igreja.
Em conclusão, a celebração litúrgica
não se caracteriza como celebração moralizante ou espiritualista, mas uma
celebração que se apóia na moral e na espiritualidade fundamentada na mística do
discipulado. Isto significa propor viver e analisar o contexto social e político
em coerência com o Evangelho, inspirando-se no modo como Jesus viveu na
sociedade e no modo como Jesus se relacionava com o poder político do seu tempo.
Com tal princípio, é possível distinguir que a celebração litúrgica não é, em
sua origem, partidária, porque não se fundamenta em ideologias sociais, mas no
projeto do Reino de Deus. Assim, aquilo que na sociedade e na política não
condizem com os valores do Reino de Deus, ilumina a celebração e a torna
profeticamente denunciadora. Aquilo que na sociedade e na política não se
ajusta ao projeto divino do Reino faz da celebração um momento para propor
caminhos novos e atividades transformadoras na política e para a sociedade a
partir da Palavra de Deus.
Nenhuma celebração litúrgica,
portanto, é analgésica ou alienante das questões sociais. Ao contrário de ser
alienante ou analgésica, toda celebração é provocativa e propositiva de uma
nova ordem social a partir de uma nova proposta política, sempre iluminada pela
Palavra, proclamada em todas as celebrações. Mas, bem entendido, trata-se de
uma dimensão.
(Serginho Valle)
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