23 de set. de 2015

Liturgia, crise, política e moral

A frase “celebrar a vida” sempre aparece em textos litúrgicos, em palestres a reflexões sobre a Liturgia. É uma frase genérica e, por isso, aberta a muitos aspectos da vida pessoal e social. Um destes aspectos é a questão política, da qual fazem parte os celebrantes. Mas, quando este tema aparece celebração, muita gente torce o nariz, e muitos alegam que se está transformando o presbitério em palanque político.
            Defendo que a celebração precisa manter suas características religiosas, especialmente a dimensão orante. Mas, juntamente com a dimensão orante, existe aquela reflexiva, própria da Lectio Divina, que antecede a celebração (na preparação) e que a contextualiza, particularmente no momento da homilia. Ou seja, é a Palavra que conduz a vida pessoal, social e política para dentro da celebração. Isto ajuda-nos a perceber que o tema “política, crise e moral” tem sentido quando introduzida no contexto da proclamação da Palavra. Neste caso, a “celebração da vida” comporta também a questão política. Vários textos bíblicos proclamados nas celebrações relatam fatos políticos, seja do Antigo como do Novo Testamento. O ponto está em compreender que aqueles fatos políticos, relatados em tantas Liturgias da Palavra, revelam a ação divina na condução do povo, para que a vida do povo fosse preservada.
            O critério proposto pela Pastoral Litúrgica, e com sustentação na Teologia Litúrgica, orienta a ler a realidade pessoal e social com a luz da Palavra; favorecer de modo cristão, sempre iluminando-se na Palavra, a compreender a proposta divina para este momento histórico e, propor um compromisso de mudança social a partir da Palavra de Deus. Quando a política aparece nas celebrações não se tem em mente uma opinião partidária, a defesa ou a promoção de um político, ou a preferência por uma ideologia; nada disso. Mas única e exclusivamente analisar a realidade sócio-política atual à luz da Palavra de Deus.
            Dois exemplos clássicos ajudam-nos a compreender este fato. A Liturgia do 26º Domingo do Tempo Comum - C proclama, na 1ª leitura, um texto de Amós (Am 6,14-7). É uma crítica severa aos governantes e políticos que vivem as custas do povo, acumulando riquezas pela corrupção e empobrecendo o povo pobre pela carga de impostos. É um texto que retrata, fotografa, a realidade brasileira deste momento histórico. Aqui, a Liturgia chama atenção dos celebrantes para os políticos mal-intencionados que pensam unicamente em si e nos interesses de seus partidos. Um modo de perceber que se trata de um pecado social que desagrada a Deus. Se o padre, na homilia, fizer uma comparação com a gestão política brasileira não está nem a favor e nem contra um partido político, mas a favor do pensamento divino, que condena quem se serve do poder para enriquecer-se e oprimir o povo.
            Um outro exemplo vem do Evangelho: a multiplicação dos pães (Jo 6,1-15), proclamada no 17º Domingo do Tempo Comum – B. A homilia poderá ressaltar o valor da partilha, o gesto do garoto que oferece a Jesus tudo que tem, ou, fazer uma homilia para espiritualizar o fato ou, ainda, se deixar iluminar pelo contexto social atual e refletir sobre uma nova ordem política, não fundamentada no capitalismo do lucro financeiro, mas na partilha, na valorização da pessoa humana. No atual contexto social e político, no qual se revela um esquema corrupto de políticos e empresários, esta seria a escolha mais real e oportuna. Neste caso, o padre ao condenar tal estrutura e propor uma nova ordem social, não está fazendo propaganda política, mas refletindo a atual conjuntura política e social à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja.
            Em conclusão, a celebração litúrgica não se caracteriza como celebração moralizante ou espiritualista, mas uma celebração que se apóia na moral e na espiritualidade fundamentada na mística do discipulado. Isto significa propor viver e analisar o contexto social e político em coerência com o Evangelho, inspirando-se no modo como Jesus viveu na sociedade e no modo como Jesus se relacionava com o poder político do seu tempo. Com tal princípio, é possível distinguir que a celebração litúrgica não é, em sua origem, partidária, porque não se fundamenta em ideologias sociais, mas no projeto do Reino de Deus. Assim, aquilo que na sociedade e na política não condizem com os valores do Reino de Deus, ilumina a celebração e a torna profeticamente denunciadora. Aquilo que na sociedade e na política não se ajusta ao projeto divino do Reino faz da celebração um momento para propor caminhos novos e atividades transformadoras na política e para a sociedade a partir da Palavra de Deus.
            Nenhuma celebração litúrgica, portanto, é analgésica ou alienante das questões sociais. Ao contrário de ser alienante ou analgésica, toda celebração é provocativa e propositiva de uma nova ordem social a partir de uma nova proposta política, sempre iluminada pela Palavra, proclamada em todas as celebrações. Mas, bem entendido, trata-se de uma dimensão.

(Serginho Valle)
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