Quem lida com PL conhece
a etimologia da palavra “Liturgia”: serviço; serviço prestado ao povo. Liturgo
é alguém que se dedica a servir o povo, diz o primeiro volume da coleção
Anàmnesis. A prioridade do serviço litúrgico, sendo redundante nos
significados, pertence a Deus. É Deus que, na Liturgia e pela Liturgia, dedica-se
a servir seu povo. Jesus é o “diácono” divino, o servidor de Deus e dos homens.
É a Liturgia como “Opus Dei”, o serviço de Deus. São noções que nos situam na
proposta serviçal contida na Liturgia.
A
resposta humana ao serviço divino acontece em duas atividades. Primeiro pelo
serviço laudativo e glorificador que a Igreja celebrante eleva a Deus; é o “sacrificium
laudis” (sacrifício, no sentido de “oferta”; o louvor é um sacrifício, é um dom
oferecido a Deus). O segundo momento deste serviço acontece no cotidiano da
vida de cada celebrante que transforma sua vida em serviço fraterno. É o
“sacrificium vitae”, a oferta da vida que acontece concretamente pelo serviço. A
origem deste segundo elemento encontra-se na Instituição da Eucaristia, no
gesto do lava-pés: “eu vos dei o exemplo
para que façais o mesmo” (Jo 13,15).
Sobre
este segundo elemento, uma anotação, em passant, que serve como exemplo.
Ouve-se muito, nas Missas, o convite para oferecer a vida no momento das
apresentações das oferendas. Está certo, mas a concretização deste ofertório só
acontece na atividade prática de quem se coloca a serviço. Não se trata,
portanto, de um rito emocional, que se conclui com um sentimento de gratidão,
na celebração. Este rito de oferecer a vida só se completa em que viver
servindo, a exemplo de Jesus que veio para servir e não para ser servido (Mt
20,28). Nenhuma celebração litúrgica está completa somente no rito celebrativo
porque toda celebração conduz para a vida e a vida leva à celebração.
Serviço como alternativa
do poder
Outro
exemplo referente ao segundo elemento, considerando uma questão prática do
envio celebrativo, especialmente na Eucaristia: a Liturgia sempre envia seus
celebrantes a viver em contexto de serviço fraterno. É uma proposta que tem
embutida uma atitude transformadora da ordem social, que irá se refletir nos
relacionamentos sociais.
A
sociedade, como sabemos, é regida por vários poderes, como o poder político, o
poder financeiro, o poder da mídia... A Liturgia, em suas celebrações, propõe o
“serviço” como alternativa ao poder que rege a vida social. Todos os poderes do
mundo fundamentam-se na competição e na lei que os fortes vencem e dominam.
Aquele ensinamento de Jesus “entre vós
não seja assim...” é continuamente repetido em todas as celebrações litúrgicas:
“quem dentre vós quiser ser o primeiro,
seja seu servidor” (cf. Mt 20,25-28). Ou seja, a Liturgia propõe um poder alternativo,
não fundamentado no exercício do domínio, mas em se colocar diante do outro disposto
a servir fraternalmente. Este um o poder transformador dos relacionamentos
sociais. É o segredo da transformação social.
Entende-se,
neste contexto, que a Liturgia não comporta espaço para comícios políticos,
embora possa propor critérios para escolha de lideranças sociais, iluminando-se
no conceito evangélico do serviço. Um desses critérios, critério primário, por
ser o mais importante, é o serviço à vida. Em toda celebração litúrgica a vida
sempre está presente, seja na sua Eucologia, seja em ritos, seja na simbologia
sacramental... Vida plena, vida em abundância, no dizer de Jesus (Jo 10,10).
Ora, quem participa desta vida abundante na Liturgia torna-se divinizado, comprometido
em partilhar esta mesma vida, no cotidiano da sua existência, pelo serviço
fraterno. A Liturgia é a escola do serviço fraterno que sempre compromete os
celebrantes com a promoção da vida plena. Claro que isso só é possível se a
Liturgia for completa, quer dizer, celebração e atitude existencial.
Disto,
a minha repetida proposta que o envio celebrativo, particularmente o envio
Eucarístico, deveria ser: “vai e faze
tudo o mesmo” (Lc 10,37). É o envio ao serviço fraterno, iluminado na
misericórdia, presente na parábola do Bom Samaritano. Fazer o mesmo que Jesus e
fazer como Jesus, para que a Liturgia seja completa: seja celebração e atitude
de serviço fraterno.
Serginho Valle
Março 2019
0 comentários:
Postar um comentário
Participe. Deixe seu comentário aqui.