A fé que nasce do coração do povo
A piedade
popular é uma riqueza. Papa Francisco diz que é “o modo como a fé se
expressa espontaneamente no coração do povo” [EG, 122]. Ela aparece
nos gestos simples: a promessa, a vela acesa, a flor diante do altar, a romaria
ao santuário... São formas afetivas de se aproximar de Jesus, de Nossa Senhora,
dos santos, santas e dos anjos.
O Concílio Vaticano II lembra que a Igreja acolhe essas expressões, mas também as ilumina, para que não caiam em superstição [SC 13]. Ou seja: a Igreja não rejeita, mas acompanha e valoriza.
O corpo que reza
Na piedade
popular não se reza só com palavras. O corpo inteiro participa:
- o peregrino caminha
quilômetros;
- alguém sobe de joelhos até o
altar;
- outros levantam os braços
- muitos desejam tocar imagens
sagradas
- há aqueles que se paramentam
para cantar e rezar
É a fé vivida pelos cinco sentidos. O cheiro da vela, o som do cântico, a cor das flores, o toque nas paredes do santuário. Como dizia Santo Agostinho: “quando o corpo serve à alma que ama a Deus, ali já existe um culto verdadeiro” [Cidade de Deus, X,6].
A força da promessa
Promessas
fazem parte da experiência psicológica da fé. É como se fosse um “contrato
espiritual”: a pessoa pede uma graça e oferece algo em troca — um gesto, um
sacrifício, uma caminhada. Essa entrega pacifica o coração. O corpo se cansa e
a alma encontra paz. Não se faz barganha com Deus, se agradece com um esforço a
mais.
Na prática, é o povo transformando o cotidiano em oração. É a vida real, com suas dores e esperanças, se tornando espaço de encontro com Deus.
Liturgia e piedade popular: não são inimigas
A
Liturgia da Igreja é diferente. Ela é calma, silenciosa, centrada no Mistério
Pascal. Nela, o essencial é o gesto de Cristo que se faz presente nos
sacramentos. A Liturgia pede sobriedade e simbolismo, não sacrifícios pesados.
Mas isso não significa oposição. Pelo contrário: a piedade popular pode levar à Liturgia, e a Liturgia pode purificar e orientar a piedade popular. João Paulo II dizia: “a piedade popular, se for bem orientada, é um autêntico exercício da fé” [RM 52].
Um exemplo simples: a romaria que termina com a celebração da Penitência e da Eucaristia. O caminho popular conduz ao altar, e a celebração sacramental dá sentido mais profundo ao gesto.
O desafio pastoral
A missão
da Igreja não é apagar a piedade popular, mas iluminá-la. O Documento de
Aparecida recorda que ela é um “lugar teológico” [DA 263], onde o povo
experimenta Deus na sua forma simples e concreta de viver.
Flores vivas, velas verdadeiras, imagens que podem ser tocadas: tudo isso fala de autenticidade manifestada pelos sentidos. É o rezar com os cinco sentidos. O povo tem dificuldade em rezar com coisas artificiais. Ele precisa ver, sentir, tocar. É a fé encarnada.
Conclusão
Liturgia
e piedade popular são duas linguagens diferentes da mesma fé. Uma mais sóbria,
outra mais afetiva e sensorial. Juntas e orientadas para a Liturgia sempre
produz enriquecimento espiritual.
A piedade popular abre caminhos, aquece os corações, mobiliza os sentidos. A Liturgia mergulha no Mistério e fortalece a comunhão com Cristo. Uma conduz à outra e ambas favorecem o crescimento espiritual de viver próximo de Deus e com Deus.
No fim, tudo se resume a isto: o povo que reza com o corpo e com o coração está buscando a Deus. E a Igreja, como mãe, acolhe, orienta e conduz cada gesto, cada promessa, cada celebração, para o encontro pleno com Jesus.
Serginho Valle
Setembro de 2025