19 de set. de 2025

Quando o povo reza com o corpo: piedade popular em diálogo com a liturgia

A fé que nasce do coração do povo

A piedade popular é uma riqueza. Papa Francisco diz que é “o modo como a fé se expressa espontaneamente no coração do povo” [EG, 122]. Ela aparece nos gestos simples: a promessa, a vela acesa, a flor diante do altar, a romaria ao santuário... São formas afetivas de se aproximar de Jesus, de Nossa Senhora, dos santos, santas e dos anjos.

O Concílio Vaticano II lembra que a Igreja acolhe essas expressões, mas também as ilumina, para que não caiam em superstição [SC 13]. Ou seja: a Igreja não rejeita, mas acompanha e valoriza.

O corpo que reza 
Na piedade popular não se reza só com palavras. O corpo inteiro participa:  

  • o peregrino caminha quilômetros;
  • alguém sobe de joelhos até o altar;
  • outros levantam os braços
  • muitos desejam tocar imagens sagradas
  • há aqueles que se paramentam para cantar e rezar

É a fé vivida pelos cinco sentidos. O cheiro da vela, o som do cântico, a cor das flores, o toque nas paredes do santuário. Como dizia Santo Agostinho: “quando o corpo serve à alma que ama a Deus, ali já existe um culto verdadeiro” [Cidade de Deus, X,6].

A força da promessa 
Promessas fazem parte da experiência psicológica da fé. É como se fosse um “contrato espiritual”: a pessoa pede uma graça e oferece algo em troca — um gesto, um sacrifício, uma caminhada. Essa entrega pacifica o coração. O corpo se cansa e a alma encontra paz. Não se faz barganha com Deus, se agradece com um esforço a mais.

Na prática, é o povo transformando o cotidiano em oração. É a vida real, com suas dores e esperanças, se tornando espaço de encontro com Deus.

Liturgia e piedade popular: não são inimigas
A Liturgia da Igreja é diferente. Ela é calma, silenciosa, centrada no Mistério Pascal. Nela, o essencial é o gesto de Cristo que se faz presente nos sacramentos. A Liturgia pede sobriedade e simbolismo, não sacrifícios pesados.

Mas isso não significa oposição. Pelo contrário: a piedade popular pode levar à Liturgia, e a Liturgia pode purificar e orientar a piedade popular. João Paulo II dizia: “a piedade popular, se for bem orientada, é um autêntico exercício da fé” [RM 52].

Um exemplo simples: a romaria que termina com a celebração da Penitência e da Eucaristia. O caminho popular conduz ao altar, e a celebração sacramental dá sentido mais profundo ao gesto.

O desafio pastoral
A missão da Igreja não é apagar a piedade popular, mas iluminá-la. O Documento de Aparecida recorda que ela é um “lugar teológico” [DA 263], onde o povo experimenta Deus na sua forma simples e concreta de viver.

Flores vivas, velas verdadeiras, imagens que podem ser tocadas: tudo isso fala de autenticidade manifestada pelos sentidos. É o rezar com os cinco sentidos. O povo tem dificuldade em rezar com coisas artificiais. Ele precisa ver, sentir, tocar. É a fé encarnada.

Conclusão
Liturgia e piedade popular são duas linguagens diferentes da mesma fé. Uma mais sóbria, outra mais afetiva e sensorial. Juntas e orientadas para a Liturgia sempre produz enriquecimento espiritual.

A piedade popular abre caminhos, aquece os corações, mobiliza os sentidos. A Liturgia mergulha no Mistério e fortalece a comunhão com Cristo. Uma conduz à outra e ambas favorecem o crescimento espiritual de viver próximo de Deus e com Deus.

No fim, tudo se resume a isto: o povo que reza com o corpo e com o coração está buscando a Deus. E a Igreja, como mãe, acolhe, orienta e conduz cada gesto, cada promessa, cada celebração, para o encontro pleno com Jesus.

Serginho Valle 
Setembro de 2025

 

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