31 de out. de 2020

Celebrar com a humildade da Liturgia

Toda celebração litúrgica propõe um compromisso existencial do celebrante com Deus. Da parte divina, o compromisso sempre acontece, porque Deus derrama sua graça e nos alimenta com sua vida. Da parte humana, dada nossa fragilidade, nem sempre assim acontece. Não poucas vezes, celebramos descompromissadamente. Isso pode ser por desatenção ou pelo modo de celebrar, favorecendo manifestações de espiritualismos “psicologizantes e analgésicos” ou do tipo autoajuda.

Tais celebrações estão estritamente voltadas para o individualismo com promessa de socorrer ou sarar um mal-estar psicológico, causado por uma decepção, uma tristeza, uma angústia ou algum fracasso. Que uma celebração litúrgica bem realizada promove bem-estar psicológico, produz paz interior e alegria espiritual, não se discute. O tema presente são as celebrações direcionadas e realizadas carregadas unicamente no emocional e no sentimental. Minha preocupação pensa em assembleias, nas quais a ladainha de dores e mazelas sempre é anunciada com dramaticidade, pedindo que os que sofrem levantem as mãos, fechem os olhos, coloquem a mão no coração, coloquem a mão no ombro de quem está ao lado... Ritos que não pertencem ao ritual litúrgico da Igreja. Não os classifico em categorias de litúrgicos ou não litúrgicos; o ponto está na finalidade: usados unicamente para emocionar e confundir a emoção como experiência mística.

A celebração litúrgica, evidentemente, contém sentimento e emoção, mas não se serve deles de modo abusivo, dado o risco de desvio na experiência espiritual. No meu consultório de psicólogo tenho atendido várias pessoas que criaram escrúpulos por se sentirem curadas no momento emocional (uma espécie de transe psicológico) e, na volta para o cotidiano, perceberam que nada tinha acontecido. Assuntos como castigo divino, não se sentir amado por Deus, sentimento de vulnerabilidade espiritual... São temas que acendem um sinal de alerta aos bispos, padres e responsáveis pela Pastoral Litúrgica.

Espiritualismos analgésicos são capazes de consolar as pessoas e promoter esperanças por um momento. Usam e abusam de frases de autoajuda com promessas e garantias que Deus está curando ou resolvendo situações problemáticas. Alguns presidentes de assembleias litúrgicas indicam esta ou aquela oração poderosa; algo que também é estranho na Teologia Espiritual católica, porque a oração, e particularmente a oração litúrgica, nunca se apresenta com adjetivos de poderosa, milagrosa... mas com a simplicidade humildade da adoração, do memorial e da súplica. Falar de fórmulas orantes poderosas, ao meu ver, é descrer na oração humilde e sincera elevada a Deus.

Pode ser que falte formação, pode ser que na tentativa de fazer o melhor se apele para o que não tem relevância nem na Teologia Litúrgica e nem na Espiritualidade Litúrgica. Não estou discutindo a boa intenção de quem introduz tais ritos na Liturgia. Apenas peço atenção para a diferença entre a finalidade proposta por estes ritos e a finalidade proposta pela Liturgia. É preciso ter cuidado para não confundir as pessoas. A Liturgia não promete milagres, curas e libertações com ritos e rezas. As praenotandas do Ritual da Unção dos Enfermos e do Ritual de Bênçãos chamam atenção que o efeito de curas e resolução de problemas é sempre vontade de Deus e, para que isso aconteça, a Liturgia católica, na sua história milenar, sempre primou por se colocar como serva, simples e humilde, confiante e suplicante, diante de Deus para adorá-lo e suplicar a graça necessária respeitando a vontade divina. Deus, em sua bondade, misericórdia e sabedoria infinitas, saberá fazer o que precisa ser feito.

Serginho Valle
Setembro 2020

 

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